241 Recebido em 02/07/2021; aprovado em 13/07/2021.
DOSSIÊ – O que fazem os números? Produções, Usos e Efeitos da Quantificação E-ISSN: 2176-6665
DOI: 10.5433/2176-6665.2021v26n2p241
O que Fazem os Números? Produções, Usos e Efeitos da Quantificação da Vida Cotidiana
What Numbers Do? Production, Uses, and Effects of Quantification in Everyday Life
*Glaucia Maricato1 *Vitor Simonis Richter2
Resumo
A deflagração da pandemia da Covid-19 casou uma intensa circulação de tabelas, gráficos, estatísticas e rankings que buscam narrar o comportamento das infecções e mortes pelo novo vírus. Tais ‘dados’ se tornaram o cerne de disputas e negociações, evidenciando a centralidade e efeitos políticos das narrativas numéricas. Há muito pesquisadores e pesquisadoras têm abordado processos de mensuração de populações e de fenômenos sociais como instrumentos de poder e, mais recentemente, pesquisas têm avançado a discussão sobre os efeitos políticos da redução de processos sociais complexos a números. Nessa apresentação, introduzimos alguns dos problemas e subtópicos que povoam os debates contemporâneos sobre processos de quantificação no campo das ciências sociais e dos estudos sociais da ciência e tecnologia. Em específico, abordamos alguns dos problemas que estariam no cerne das discussões sobre os números na produção de narrativas oficiais e introduzimos debates em torno do papel das classificações, dos efeitos de escala e da linguagem dos números nas tecnologias de governo. Palavras-chave: Números. Processos de quantificação. Tecnologias de governo. Escalas. Classificações.
Abstract
The Covid-19 pandemic outbreak engendered an intense circulation of tables, graphics, statistics and rankings that seek to narrate the infection`s behavior and deaths. Such “data” became the object of disputes and negotiations, highlighting the centrality and political effects of numerical narratives. For a long time, researchers have been approaching processes of measuring populations and social phenomena as instruments of power and, more recently, they have advanced in the discussion on the political effects of reducing complex social processes to numbers. In this introduction, we outline issues that populate contemporary debates on quantification processes in the fields of social sciences and science and technology studies (STS). More specifically, we address the role of numbers in government and
1 Freie Universität Berlin, Fachbereich Politik- und Sozialwissenschaften, Institut für Sozial- und Kulturanthropologie (ISK-FUB, Berlim, Alemanha). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4318-3850. 2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGPOL-IFCH-UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9475-9277. E-ISSN: 2176-6665
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State narratives and we introduce debates on the role of classifications, on scalar effects, and on the use of numbers on technologies of government. Keywords: Numbers. Quantification. Technologies of government. Scales. Classifications.
A deflagração da pandemia mundial da Covid-19 no primeiro semestre de 2020
teve como um de seus efeitos a intensa circulação de tabelas, gráficos, estatísticas, rankings e outras tecnologias de visualização de dados numéricos sobre as taxas de infecções e mortes e o andamento das campanhas de vacinação. A quantificação da pandemia em seus diversos aspectos nos informava constantemente sobre o alastramento e tentativas de controle do novo vírus, fazendo saltar aos olhos as diferenças regionais e nacionais de um mundo marcado por desigualdades. Diariamente passamos a ouvir falar sobre a “curva” de casos, sobre subnotificações, sobre as taxas de vacinação, sobre as percentagens de casos graves e hospitalizações. Ainda nos primeiros meses da pandemia, fomos inundados por variados debates que colocavam as técnicas, classificações, normativas e instrumentos de produção de dados epidemiológicos em evidência. Em abril de 2020, a mídia brasileira estampava matérias sobre a disparada do número de casos de morte por doença respiratória sem causa identificada, trazendo à tona o intrínseco enredamento entre diagnóstico, classificações obituárias e controle epidemiológico da Covid-19. Ao mesmo tempo, falava-se sobre a discrepância em relação aos dados divulgados pelo governo federal e os governos estaduais. Em meados de 2021, o número sem precedentes de mortes no país ressoava nas redes e nos debates públicos no contexto nacional e internacional, seguidos das alarmantes tentativas do governo federal de se desresponsabilizar. Em paralelo a crise sanitária, a crise política no Brasil deu contornos dramáticos ao tema da produção de dados estatísticos, tornando ainda mais evidente a centralidade dos números como tecnologia de produção de narrativas oficiais. A questão das tecnologias de quantificação não está, é claro, limitada ao campo da saúde; afinal, somos constantemente informados sobre os índices de pobreza nos países, sobre as taxas de analfabetismo, escutamos sobre indicadores de violência, sobre a subida ou descida das taxas de desemprego, somos convidados a observar gráficos sobre a poluição em grandes capitais ou acompanhar o ranking mundial de países com maior e menor exposição a notícias falsas e etc. Já há algum tempo cientistas sociais têm discorrido sobre a importância do desenvolvimento de pesquisas e debates voltados à produção, utilização e efeitos de dados quantitativos e linguagem numérica. Autores como Ian Hacking (1990), Michel Foucault (1998, 2008) e Alain Desrosières (1998) demonstraram como as estatísticas e quantificações diversas servem como instrumento de governo e poder estatal. A própria invenção das estatísticas esteve intimamente enredada à constituição de Estados-nações no século XIX (HACKING, 1990; SCOTT, 1998). Em anos mais recentes, autoras como Marilyn Strathern (2000), Sally Merry (2011), Chris Shore e Susan Wright (2015) e Isabelle Bruno (2008, 2010) destacaram como números, indicadores e estatísticas têm tornado os rankings um aspecto central da ordenação de tecnologias de governo e de auditoria. A principal característica desta mudança consistiria em transformar e reduzir processos sociais complexos e diversos a números, especialmente transformados em tabelas e gráficos organizados em rankings passíveis de comparações e de ordenação de uma hierarquia moral acerca dos “bons indicadores” e das ações recomendadas para adequação destes. Conforme apontam, a E-ISSN: 2176-6665
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proliferação de indicadores e ranking globais não tem impulsionado apenas a mudança de estratégias nacionais e novas formas de (auto)governo, como também a produção de novas subjetividades (BRUNO, 2008, 2010; SHORE; WRIGHT, 2015). Os números, como aquilo que deve ser lido pelos administradores públicos, se tornam mediadores importantes das tecnologias de governo contemporâneas. Nikolas Rose (1999) afirma que, além de constituir aquilo a ser lido pelos representantes da administração, os números permitem que os planos e diagnósticos da “realidade” sejam apresentados como retórica do desinteresse, da objetividade e da imparcialidade, características muitas vezes associadas à ciência (HACKING, 1990; HARAWAY, 1995). Chamamos atenção, portanto, para a maneira como os números são tomados como dados neutros, livres de valores e interferência humana, apolíticos – verdadeiras imagens da “realidade real”. Os números, e com eles tabelas, mapas e gráficos, se tornam instrumentos pelos quais versões da realidade são performadas. As estatísticas não são, todavia, apenas produtos da política institucional oficial de agências governamentais, transnacionais e organizações empresariais privadas. Elas também fazem parte e são tomadas como formas engajadas de ativismos. Podemos citar como exemplos as ONGs e movimentos sociais empenhados na luta pelos direitos das mulheres, das populações negras e comunidade LGBTQI+ que atuam produzindo, compilando e organizando indicadores e dados estatísticos em relação a violência doméstica, urbana e policial. Podemos citar também organizações de pacientes que pressionam autoridades locais e nacionais na produção de dados estatísticos afim de chamar a atenção para doenças e condições de saúde específicas que tendem a ser negligenciadas ou apagadas dos debates públicos. E ainda, grupos de ecologistas que acionam linguagem numérica e estatísticas para tentar transmitir a escala e a situação dramática que grandes desmatamentos, aquecimento global, queimadas, poluição, secas, tempestades têm para a vida no planeta Terra. O uso da linguagem dos números através da produção de estatísticas nestes casos pode ser visto como uma importante estratégia de visibilização das preocupações e demandas por políticas de proteção e promoção dos interesses desses grupos. Trata-se, aqui, daquilo que alguns autores têm chamado de estatativismo, “um conceito que descreve um conjunto de práticas estatísticas voltadas a emancipação, como de uma palavra de ordem que convoca atores sociais a utilizarem-se do poder da quantificação em suas lutas [...].” (DIDIER; BRUNO, 2021, p. 82).
O Papel das Classificações
A análise dos processos de quantificação da vida cotidiana está inelutavelmente
conectada a uma reflexão acerca dos processos de classificação e categorização. Afinal, para que seja possível realizar a mensuração dos níveis de poluições em grandes metrópoles, por exemplo, é preciso primeiro estabelecer os limites que separam um ar poluído de um ar não poluído. Quando uma epidemia é anunciada, isso significa que o número de casos registrados num determinado intervalo de tempo cruzou a fronteira entre o que seria aceitável e a emergência de saúde pública. Para que os níveis de violência doméstica sejam comparados entre regiões, primeiro se estabelece aquilo que conta e não conta como violência doméstica. Portanto, chamamos a atenção para uma interessante linha de investigação intimamente atrelada aos estudos dos processos de quantificação interessada em abordar questões tais como: a) quais são as categorias, classificações, diferenciações que informam as quantificações? B) quais são os atores E-ISSN: 2176-6665
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envolvidos na delimitação dessas categorias? C) quais as negociações e disputas que são colocadas? D) quais são os elementos que ganham destaque ou que são invisibilizados nesses processos de classificação e quantificação? E) como classificações e categorias produzem aquilo que pretendem mensurar? Cientistas sociais e historiadores têm analisado classificações locais como forma de entender determinadas culturas, relações sociais e processos históricos. Tal como nos lembra o importante trabalho de Geoffrey Bowker e Susan Star (1999), “classificar é humano”. Todos os dias, abro minha caixa de e-mail e separo aquilo que é lixo daquilo que é importante, crio pastas e subpastas para diferentes assuntos e de tempos em tempos reorganizo tudo de formas diferentes. Uma vez por semana, verifico meu próprio peso na balança do banheiro, coloco o resultado em um aplicativo no celular que, por sua vez, me informa sobre o meu IMC corporal, alertando caso tenha cruzado o limite entre o “peso ideal” e o “sobrepeso”. Pela tardinha, telefono para meu “meio-irmão” para organizar a celebração de “bodas de prata” do nosso pai e juntos fazemos uma lista de compras colocando de um lado aquilo que é “essencial” e de outro aquilo que “talvez a gente compre”. Se estamos o tempo todo classificando o mundo ao nosso redor, estamos, necessariamente, fazendo-o a partir de noções que não estão livres de valores morais e relações de hierarquia localmente moldados. Ou seja, processos de classificação e quantificação são inevitavelmente perpassados por relações de poder – categorias, classificações ou padrões (standards) valorizam determinados pontos de vista e silenciam outros (BOWKER; STAR, 1999). Essa questão se torna mais evidente quando analisamos a burocratização, ou o congelamento dessas categorias, pelas tecnologias de governo. Por exemplo, podemos tomar o simples ato de cadastramento em alguma plataforma governamental. Enquanto para alguns sujeitos o preenchimento dos campos necessários do formulário poderá ser realizado de forma corriqueira, para outros, esse simples procedimento pode se tornar uma experiência de violência institucional. Ao oferecer apenas duas opções de resposta para o campo “sexo” – homem ou mulher -, o questionário em questão invisibilizaria os sujeitos que se identificam como queer, trans e etc. Em meados de 2021, circulava por algumas redes sociais matérias que tratavam do censo demográfico prestes a ocorrer na Polônia, país do leste europeu. Conforme destacavam, o formulário de preenchimento obrigatório pelos cidadãos poloneses questionava o estado civil dos sujeitos, mas não oferecia campos de preenchimento adequado para aqueles que eram legalmente casados com pessoas do mesmo sexo no exterior (diferente da maioria dos países integrantes da União Europeia, uniões homoafetivas não são reconhecidas no país). Ou seja, mesmo que o preenchimento fosse obrigatório para os sujeitos vivendo em outros países, o censo proposto pelo governo operava um apagamento do número de poloneses em casamentos homoafetivos no exterior. Nesses exemplos, portanto, sexo e sexualidade são categorias e classificações operadas pela administração pública e que através das burocracias estatais e estatísticas oficiais solidifica posicionamentos políticos. Se aqueles campos de preenchimento do censo polonês não tivessem sido modificados, fruto da pressão de organizações locais e internacionais, o resultado do censo possivelmente divulgaria dados sobre uma população casada no exterior cem por cento heterossexual. Voltando ao tema da pandemia da Covid-19, podemos nos questionar sobre sua temporalidade – sobre o seu começo e (ainda incerto) fim. Quando a Organização Mundial da Saúde irá declarar o fim da pandemia? Quando a maioria da população mundial estiver vacinada? Qual exatamente será a percentagem (quando a vacinação E-ISSN: 2176-6665
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atingir 70%, 80% da população?) Quando o número de mortes diárias tiver caído para determinado nível? Qual nível? Quais serão os efeitos dessa declaração para potenciais questões ainda em aberto acerca das sequelas da Covid-19? Qual será o investimento em pesquisas uma vez que a atenção internacional se dissipar? Pesquisando sobre a epidemia do vírus zika e sua relação com a microcefalia no nordeste brasileiro, Debora Diniz (2017) apontou que, embora o Ministério da Saúde do Brasil tenha decretado o fim da situação de emergência de saúde em 2017, para as mães de crianças com síndrome congênita do zika a epidemia jamais terá fim pois elas seguirão vivendo uma maternidade cuidadora e solitária. Para além disso, a declaração da OMS do fim da emergência de saúde pública devido a epidemia de zika vírus significou o fim do fluxo de recursos para desenvolvimento de novas pesquisas e políticas sociais (LAKOFF, 2019). O que está em jogo aqui, portanto, é o fato de que ao deixar de ser classificada como uma emergência, uma questão de saúde pode deixar de figurar na agenda pública sem que, contudo, importantes questões científicas e sociais tenham sido resolvidas. Portanto, se estamos a todo tempo classificando o mundo ao nosso redor, e essas classificações são intrinsicamente moldadas a partir de concepções, hierarquias e relações de poder, estamos também produzindo dados numéricos que respondem – ou, poderíamos dizer, adicionam uma camada de solidez – a essas classificações. A partir da análise de campanhas de eliminação da hanseníase, Glaucia Maricato (2021) demonstrou como classificações biomédicas e decisões políticas se enredam na produção de dados epidemiológicos que a longo prazo operam uma invisibilização dessa doença na agenda da saúde global ao mesmo tempo em que milhares de sujeitos são diagnosticados todos os anos e uma série de questões médico-científicas continuam em aberto. Vincanne Adams (2016) faz uso da noção de “métricas”, enquanto tecnologias de contagem, para tratar da crescente centralidade de abordagens quantitativas na administração da saúde global. Por fim, cabe ainda destacar que as classificações têm papel importante não apenas na maneira como organizamos o mundo ao nosso redor e como moldamos tecnologias de governo, como fazem parte também da nossa forma de viver e experienciar o mundo. Um já clássico trabalho sobre a relação entre classificações de pessoas e processos de subjetivação pode ser encontrado em Ian Hacking (2002), que sugere o conceito de “looping effect” para dar conta daquilo que descreve como uma espécie de nominalismo dinâmico. Se estamos o tempo todo classificando, as classificações também fazem parte da maneira como identificamos uns aos outros e nos autoidentificamos – seja a partir de categorias que podem não ter implicações políticas, tal como, por exemplo, signos do zodíaco, seja a partir de classificações que ensejam disputas e carregam consigo peso político e social, tal como “negra/o”, “sapatão” ou “travesti”. Embora o desenvolvimento dessa discussão específica não faça parte dos objetivos desse dossiê, os processos de subjetivação de tipos de pessoa é uma linha importante de pesquisa que atravessa debates sobre processos de quantificação – e dois dos artigos publicados aqui evidenciam brilhantemente essa questão em contextos de produção de dados demográficos nacionais e de classificação de sujeitos em processos criminais.
Números e Indicadores Entre as Tecnologias de Governo
A relação entre classificações e quantificação tem tido um espaço considerável
em certa literatura de orientação foucaultiana (DEAN, 1995, 2009; DESROSIÈRES, 1998; FOUCAULT, 1987; HACKING 1990). Nesta tradição, as classificações e suas formas E-ISSN: 2176-6665
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numéricas, especialmente a estatística, se tornam objeto de estudo para compreender a relação entre saber e poder nas práticas de governo e de Estado. Deste conjunto de reflexões, alguns autores se voltaram para as tecnologias de governo entendidas como um “complexo de programas mundanos, cálculos, técnicas, aparatos, documentos e procedimentos através do qual autoridades buscam incorporar ambições governamentais” (ROSE; MILLER, 1992, p. 273), que têm como objetivo principal organizar as condutas e práticas cotidianas e incidir sobre a subjetividade das pessoas a serem governadas (ONG, 2003). Tecnologias de governo frequentemente acionam a práticas e técnicas de simplificação de uma realidade extremamente complexa – como, por exemplo, “a população”, “os recém-nascidos”, “a área queimada”, “moradores de rua” e “imigrantes”. Estas “simplificações” municiam os administradores e planejadores de intervenções governamentais com uma visão sinóptica que transforma um arranjo infinito de detalhes em um conjunto finito de categorias que, por sua vez, favorecem descrições sumárias, comparações e composições diversas a partir dos dados produzidos e agregados de formas particulares (DAS, POOLE, 2004; SCHUCH, 2015; SCOTT, 1998). Assim, as técnicas de mapeamento, de contabilidade e padronização da população que constituem tecnologias de governo acionam a linguagem dos números para objetivar e performar os fenômenos e realidades que buscam estabilizar. Os números, e com eles tabelas, mapas e gráficos, constituem um instrumento ou uma linguagem fundamental para realizar estas descrições, carregando consigo escolhas explícitas daquilo que se deseja quantificar, com qual frequência se quantifica bem como aquilo que se deseja não explicitar ou estabilizar nesta forma e linguagem particular. Na medida em que são estas descrições na maioria das vezes acionadas na elaboração de projetos de intervenção e políticas públicas, podemos partir do pressuposto de que não apenas os números são politicamente compostos e arranjados, mas também a política é numericamente feita e disputada (DESROSIÈRES, 1998; ROSE, 1999). Este tipo de reflexão encontra respaldos e inspirações também no campo dos estudos sociais da ciência e tecnologia, especialmente se pensarmos nos números como uma maneira específica de produzir inscrições, de estabilizar relações e objetos e fazer circular realidades até “centrais de cálculos” (LATOUR, 2000). Inscrições, no sentido atribuído por Bruno Latour (1986) em suas pesquisas sobre a prática científica e o laboratório, são aquelas operações anteriores à escrita de um artefato científico, seja ele um relatório, um artigo ou uma comunicação à comunidade científica (LATOUR; WOOLGAR, 1997). Tais operações dizem respeito aos traços, números, espectros e gráficos usados para compor “explicações poderosas” elaboradas pelos cientistas. Inscrições não constituem escrita propriamente dita, mas “transformações que materializam uma entidade em um signo, arquivo, documento, pedaço de papel, traço” (LATOUR, 2001, p. 350), e podemos incluir, os números. Ao realizarem este trabalho, os números enquanto inscrições permitem o aumento da mobilidade e o reforço da imutabilidade das entidades materializadas de modo a viajarem pelas redes sociotécnicas de forma mais protegida de interferências e desestabilizações até os seus destinos: os artigos científicos, os manuais técnicos, os relatórios de pesquisa, os balanços administrativos, as tabelas, gráficos e mapas que permitem àqueles que os interpretam e planejam realizar intervenções nas vidas de populações. As inscrições às quais Bruno Latour se refere, portanto, são dispositivos de mobilização do mundo, do espaço e do tempo, para a construção de versões da realidade, explicações poderosas e convencimento de adversários. E-ISSN: 2176-6665
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Voltando às tecnologias de governo, a conjunção entre números, inscrições e as
políticas que os envolvem pode ser observada de forma particularmente explícita na recente polêmica gerada pelo governo federal ao cancelar o censo brasileiro em 2021. Como Juan Pablo Estupiñan observa em sua contribuição neste dossiê, os censos são tecnologias de governo altamente investidas de interesses, políticas, éticas e moralidades importantes tanto para a performance do estado na vida cotidiana das pessoas quanto para as identidades compostas em conjunção com resultados e números dos censos nacionais. No caso do cancelamento do censo brasileiro, houve reação imediata de instituições do Estado, cientistas, sociedade civil e órgãos de imprensa. Durante a pandemia, assim como a grande maioria dos países, a realização do censo que deveria acontecer em 2020 foi adiada para 2021, na esperança de que a pandemia pudesse ter sido controlada e superada. Apesar dos preparativos e providências tomadas para a condução do censo sob a pandemia, o governo federal inviabilizou a pesquisa ao aprovar o corte de 96% da verba do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A reação a esta medida ocorreu em meio à desconfiança em relação aos números de mortos registrados durante a pandemia (não apenas as vítimas de Covid-19) e dos impactos econômicos da inflação e do alto desemprego poderiam se tornar deletérios para os projetos de reeleição do presidente. Mais recentemente, a literatura voltada para a relação entre quantificação e tecnologias de governo tem instigado pesquisas sobre os trabalhos dos números para além do Estado-nação (BRUNO, 2008; MERRY, 2011; SHORE; WRIGHT, 2015; STRATHERN, 2000). Cris Shore e Susan Wright (2015), por exemplo, argumentam que o estilo de “governo pelos números” (governing by numbers) importado do mundo empresarial e corporativo se tornou um aspecto definidor dos modos de governo contemporâneos, os quais apresentam como principal característica a redução de processos complexos a simples indicadores numéricos e rankings para objetivos de administração e controle. Esta forma de uso dos números, indicadores e rankings para o governo de instituições e sujeitos tem sido observada a partir da crescente presença das tecnologias de auditoria como uma forma de vigilância e avaliação remota e de acesso de “estrangeiros” (outsiders) à intimidade numérica das empresas, instituições e sujeitos. Sally Engle Merry (2011), ao analisar o lugar dos indicadores na governança global dos direitos humanos, aponta que ao mesmo tempo que os números, indicadores e rankings reforçam um estilo de governo “corporativo” alçado a modelo de “bom governo”, a concentração nos indicadores como modo de governo também abre espaço para escrutínio público e pressão política aos governos e administrações. É neste contexto que demandas por políticas de transparência e desafio aos números oficiais se fortalecem (PORTER, 1995). Isabelle Bruno e Emmanuel Didier (2013) são autores que se destacam neste tipo de análise. Partindo de seus trabalhos sobre benchmarking, uma tecnologia administrativa de comparação de indicadores de performance que instaura a dinâmica concorrencial e competitiva em espaços e relações orientadas pela cooperação, Didier e Bruno (2021) lançam mão da noção de “estatativismo” como uma forma de entender os movimentos sociais e de pressão aos governos que amparam suas demandas em números que performam a realidade dos problemas denunciados. Assim o fazendo, estes movimentos acabam por deslocar também a produção dos números de seus espaços e relações até então privilegiados do Estado-nação e do capital (DIDIER; BRUNO, 2021) em direção a novos grupos e instituições que passam a disputar a realidade através dos números. Esse tema tem E-ISSN: 2176-6665
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avançado de forma extremamente interessante e produtiva no Brasil por estudos tais quais Daniel Hirata et al. (2019), Bruno Cardoso (2019), Eugênia Motta (2019a, 2019b), Fernando Rabossi (2019)3 . Entre os diversos efeitos que a adoção deste tipo de tecnologia de governo promove, a literatura tem apontado um comum: a consolidação de formas de autogoverno orientadas por rankings que dispensariam órgãos e tecnologias de controle e vigilância por parte dos estados-nação. Os rankings como forma de governo se tornam formas de ilustrar os bons e maus desempenhos e eventuais correções de cursos sobre aquilo que é esperado de cada instituição, empresa, setor e sujeitos. A avaliação, o julgamento e a transferência dos riscos recaí sobre os sujeitos que passam a ser ainda mais responsabilizados pelo sucesso ou fracasso de suas instituições, empreendimentos e administração da vida cotidiana (CAMARGO et al, 2021; SHORE; WRIGHT, 2015). Esta “descida” das tecnologias de governo pelos números em direção às empresas e às próprias subjetividades autogovernadas pelos rankings e indicadores, mas também sua generalização a um “mundo de indicadores” (MERRY, 2011) na governança global, nos convida a pensar sobre outro importante trabalho dos números em nossas vidas cotidianas: a composição de escalas.
Escalas como efeitos das práticas de quantificação
Como já dito anteriormente, uma das experiências inescapáveis da pandemia de
Covid-19 consiste no acompanhamento diário de um conjunto de números, indicadores e gráficos que vieram performar a pandemia na vida cotidiana. Na medida em que os números de contaminações, de fatalidades e de países atingidos foram aumentando, acompanhamos de perto o trabalho destes números na composição da escala dos problemas causados pelo sars-cov-2. Desde sua caracterização enquanto “surto” localizado em Wuhan na China, os números de casos e mortes mediaram sua definição como uma epidemia e, posteriormente, uma pandemia de doença respiratória altamente letal que continua matando milhares de pessoas ao dia. A relação entre os usos de números e a experiência da pandemia explicita como as escalas que acionamos para nos relacionarmos com os fenômenos da vida social não estão pré-estabelecidos para os/as analistas simplesmente explicarem os movimentos entre os “níveis” micro, meso ou macro, local, regional, nacional ou global, universal ou particular. Entre as diversas relações, infraestruturas, desigualdades e sofrimentos que a pandemia de Covid-19 explicitou, podemos elencar a percepção dos processos de produção de escalas (process of scaling) como uma das questões evidenciadas pelas políticas dos números ao longo da pandemia. Nas ciências sociais as escalas têm sido amplamente acionadas muito mais como ferramenta de análise do que um objeto de escrutínio analítico em si mesmo. No entanto, elas têm sido cada vez mais frequentemente tomadas como efeitos de práticas e linguagens acionadas para que as pessoas e instituições organizem, interpretem e orientem suas ações no mundo (CARR; LAMPERT, 2016; LATOUR, 2005; STRATHERN, 2004; TSING 2005, 2012). Como Marilyn Strathern (2004, p. xvi) já destacou, escalas consistem na organização de perspectivas sobre objetos de conhecimento e de interrogação, e por isso são feitas, e de forma bastante laboriosa, como Carr e Lempert (2016) argumentam. Na medida em que são feitas, elas o são por pessoas, grupos e
3 Para uma revisão recente e detalhada sobre os estudos da quantificação no Brasil, ver Camargo, Lima e Hirata (2021). E-ISSN: 2176-6665
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tecnologias que estabilizam uma visão situada e particular da relação entre qualidades e classificações escaláveis. Escalas se tornam, portanto, uma questão de perspectiva, uma maneira de olhar e situar um objeto ou uma relação que enfatizam algumas dimensões e características em detrimento de outras, justamente por ser um processo inerentemente relacional e comparativo. É neste processo de escalar relações ou objetos que as disputas se evidenciam e explicitam as suas políticas: qual escala é acionada em cada situação? Quais relações são estabilizadas em uma escala? Qual perspectiva é promovida por uma escala particular? Como ela chega a ser estabelecida, promovida, estabilizada e institucionalizada? Quais as materialidades e significados que a compõe? Estas questões convidam as analistas e os analistas a seguirem empiricamente os processos de produção de escalas atentando para a habilidade de um grupo ou pessoas em produzir uma escala, aquilo que Anna Tsing (2012) denomina de “escalabilidade” (scalability). Esta habilidade carrega e envolve relações de poder e possibilidades de estabelecer, desestabilizar ou perpetuar escalas hierárquicas de valor e de poder. As escalas passam a ser, assim, um objeto sociológico e etnográfico a ser analisado para melhor compreendermos como orientamos e significamos nossas ações ordinárias da vida cotidiana, mas também nas situações excepcionais. Ao colocar a ênfase em como escalas são feitas e como importam para as pessoas e suas relações, os números e as diferentes formas de quantificação emergem como uma importante forma de mediação das práticas escalares e da materialização das escalas que emergem como efeitos destas práticas. Seguindo o convite de Carr e Lampert (2016) de tentar entender como escalas são associadas (assembled), tornadas reconhecíveis e estabilizadas através de diversas práticas comunicativas, tendemos a entender mais facilmente o caminho percorrido pela Covid-19 até sua escala “pandêmica”4 . No entanto, podemos também tomar como exemplo alguns números que moldaram a maneira como os brasileiros experienciam e se relacionaram com a dimensão das queimadas no Pantanal no ano de 2019. A temperatura foi um número frequentemente utilizado. Elas estavam entre 4 a 6 graus celsius acima da média e foi um fator acionado nas explicações para o aumento de 334% no registro de focos de incêndio na região em relação a 2018. No entanto, as queimadas no pantanal e na região amazônica experimentaram um aumento exponencial de focos de incêndio dentro de propriedades privadas registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), segundo um relatório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) (QUEIMADAS..., 2021). Ou seja, estes focos de incêndio poderiam ser indícios do sucesso das políticas de expansão da fronteira agrícola promovidas pelo governo federal. Junto com as imagens de animais queimados e da nuvem de fumaça que escureceu cidades no sul e sudeste do país, a extensão de área queimada na casa dos milhares de hectares, geralmente convertidos em números de campos de futebol, faz uma outra escala do problema. Não mais circunscrito à vegetação e vidas locais, a extensão da área queimada (que continua crescendo) mediada pelo número de hectares destruídos, transforma o problema em uma preocupação nacional e internacional. O processo de composição de escalas não pode ser circunscrito e reduzido ao uso de números. Metáforas, metonímias e outras formas de comparação e justaposição são também tão acionadas nos projetos escalares. Os números, no entanto, parecem constituir um importante caminho para a compreensão etnográfica das escalas que povoam e orientam nossas vidas cotidianas.
4 Sobre a pandemia de Covid-19 e seu processo escalar, ver Segata (2020) e Segata et al. (2021). E-ISSN: 2176-6665
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Os artigos desse dossiê
Abrimos essa coletânea com um instigante artigo de Natalia Romero Marchesini
intitulado Muertes que cuentan: La producción de números sobre femicidios, transfemicidios y travesticidios como una política de Estado. Nele, a autora analisa a forma como são registrados os números oficiais de mortes violentas de mulheres cis gêneros, transexuais e travestis por motivos de gênero no contexto argentino. Conforme aponta Marchesini, trata-se de uma política de quantificação oficial recém implantada no país e que está atrelada ao combate contra formas de feminicídio, transfeminicídio e travesticídio. Para além da análise de documentos oficiais da administração pública, Marchesini realizou observação participante e entrevistas com integrantes do Sistema Nacional de Informacíon Criminal (SNIC), pertencente a Dirección Nacional de Estadística Criminal (DNEC) do Ministério de Seguridad de la Nación Argentina. Com base na análise desses dados, a autora demonstra como tem se dado a construção do registro oficial dessas mortes, quem são os atores responsáveis pelos registros e quais as categorias que entram em jogo. Como pano de fundo, Marchesini oferece uma reflexão sobre as condições de possibilidade para o estabelecimento da necessidade de mensurar tais mortes violentas, sublinhando como esse processo se deve a pressão vinda de movimentos de mulheres, comunidade acadêmica e organizações locais de ativistas LGBTQI+, bem como se atrela ao universo mais amplo de legislações e tratados internacionais que nos últimos anos vem impulsionando políticas em torno desse tema. O ponto auge do artigo, arriscamos sugerir, está na análise que a autora faz sobre os debates e disputas em torno da implementação da variável “identidade de gênero” nos registros administrativos policiais. Marchesini destaca as problemáticas levantadas quando as forças policiais, primeiros agentes a serem chamados para cena de um crime, são deparados com formulários que questionam a identidade de gênero da pessoa assassinada. Como classificar essas pessoas de acordo com suas identidades de gênero? Como os policiais podem distinguir entre pessoas cis, trans e travestis na cena do crime? Para quem perguntar? Trazendo as negociações e questionamentos que foram levantados entre os agentes que buscavam reformular o sistema de mensuração, a autora oferece um vislumbre interessante sobre o processo de decisão que levou a implementação da variável “identidade de gênero” no Sistema Nacional de Informacíon Criminal (SNIC). Conforme discorreu a autora, tal medida veio acompanhada de uma série de dispositivos para identificação e classificação das mortes –como a introdução de testemunhos de familiares e membros da comunidade da pessoa assassinada – e a implementação de uma política pedagógica voltada para as forças policiais. Trata-se, portanto, de um trabalho que traz à tona um debate sobre a efetivação de políticas de mensuração, um tema importante no debate dos processos de quantificação; afinal, quem e como são realizadas as coletas de dados? Quais são os formulários e como são utilizados? Quais são as categorias acionadas? Quais são as disputas e negociações colocadas? Quais são os atores envolvidos? Se o primeiro artigo nos leva para dentro de uma análise da implementação recente de uma política oficial de classificação e quantificação, o segundo artigo que compõe esse dossiê propõe uma reflexão histórica sobre processos de inclusão e exclusão de categorias censitárias. Em ¿Negro o Afrocolombiano? Disputas por las Clasificaciones Raciales/Étnicas en los Censos Colombianos, Juan Pablo Estupiñan analisa as classificações de raça/etnia em diferentes censos demográficos levado a cabo na Colômbia a fim de refletir sobre como tais categorias contribuíram para criar, legitimar e atualizar E-ISSN: 2176-6665
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representações sociais sobre as populações afrocolombianas e o lugar da raça nas relações sociais. Na primeira parte do artigo, a partir de uma análise histórica dos censos realizadas na Colômbia até meados de 1930, o autor oferece uma reflexão sobre como determinados grupos populacionais foram definidos e invisibilizados estatisticamente; processo este que estaria atrelado à constituição de narrativas sobre raça e nação. Em específico, o autor demonstra a relação entre a emergência da eugenia no final do século XIX, o desenvolvimento de projetos de branqueamento nacional pelas elites conservadoras do país e a maneira como a categoria de “raça” é retirada do censo colombiano a partir de 1928, retornando apenas em 1991. Em seguida, Estupiñan reflete sobre as transformações que ocorrem na década de 1990, contexto político de reconhecimento oficial da diversidade étnica e cultural na Colômbia, e analisa as questões e categorias mais recentes do censo de 2005 e 2018 em relação às demandas e ações do movimento afrocolombiano voltadas a fomentar o autoreconhecimento das populações negras do país. O artigo traz uma potente reflexão sobre a maneira como censos demográficos estão profundamente atrelados a projetos de nação que respondem às agendas políticas de seu tempo. No caso analisado, o autor sublinha a relação entre a produção de estatísticas oficiais e o projeto de constituição de uma nação branca, uma nação mestiça e, mais recentemente, de uma nação multicultural. Para além disso, Estupiñan oferece um importante debate sobre a maneira como a marginalização histórica das comunidades afrocolombianas refletiram, e ainda refletem, na produção de estatísticas oficiais tendo em vista que muitos dos sujeitos não se reconhecem como pertencentes a essa população. Em relação a isso, o autor descreve uma série de estratégias, campanhas e alianças que se formaram entre grupos e organizações afrocolombianas desde final dos anos 1990 com o objetivo de promover o autoreconhecimento. Trata-se de um artigo que traz uma discussão potente sobre processos de apagamentos e visibilidades operadas pelas tecnologias de mensuração do Estado e sobre a organização de atores sociais na demanda por visibilidade estatística no marco da consolidação de um projeto multicultural. Estupiñan parte da noção de que as classificações raciais/étnicas incluídas nos censos colombianos não devem ser tomadas como reflexo das diferenças naturais das populações, mas que fazem parte de disputas, negociações e reconfigurações sociais. No terceiro artigo que compõe esse dossiê, “A luta de um comando e o uso dos dados como instrumento para a elaboração de estratégias de atuação de um batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro”, Elisângela Oliveira dos Santos discorre sobre o crescimento do uso de estatísticas criminais para o planejamento operacional das polícias cariocas. Com base em trabalho de campo, pesquisa documental e entrevista com policiais e o comando de um dos batalhões da polícia militar da cidade, a autora discorre sobre o cotidiano, planejamento, processo de tomada de decisão e ações realizadas pelo “efetivo” da unidade. Em específico, dos Santos chama a atenção para a maneira como o “policiamento baseado em evidência” teria se tornado uma das principais metodologias para alocação de recursos e planejamento das ações policiais. Ao analisar a dinâmica de trabalho no batalhão, a autora descreve a maneira como são tomadas decisões, a perspectiva dos policiais em relação a determinados temas e formas de abordagem, bem como discorre sobre os chamados indicadores estratégicos de criminalidade da região de atuação daqueles policiais. O ponto alto desse artigo, sugerimos, está na maneira como ele destaca a forma como as “estatísticas de criminalidade”, que não necessariamente indicam a redução ou aumento da violência, fundamenta uma abordagem centrada em E-ISSN: 2176-6665
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metas e produtividade policial. Ou seja, é através dos números de delitos/crimes coletados pelo batalhão que são alocados recursos e é a flutuação dessas estatísticas e o alcance ou não de metas estipuladas que determinaria o bom desempenho da unidade. Trata-se de uma contribuição importante para a reflexão sobre a circularidade de indicadores que são produzidos de determinadas maneiras e a partir de determinadas categorias e que, por sua vez, produzem efeitos na maneira como políticas e ações são impulsionadas no cotidiano de instituições do Estado. Encerramos o dossiê com a contribuição de Alexandre Cardoso, Eugênia Motta e Victor Mourão intitulada Números emergentes: temporalidade, métrica e estética da pandemia de Covid-19 que aborda os efeitos da “avalanche de números” e indicadores na experiência coletiva da pandemia de Covid-19 no Brasil. Partindo da análise de matérias dos portais de jornalismo e das discussões públicas que os cercaram, os autores apresentam uma interessante correlação entre três dimensões da pandemia (estética, temporalidade e controvérsias), e sugerem uma periodização da pandemia no Brasil em três momentos a partir dos números que mobilizaram as atenções e preocupações no país. Os autores propõem que o primeiro momento desta periodização seria caracterizado pela abundante circulação de modelos epidemiológicos de previsão que instigaram uma relação com a expansão da Covid-19 através dos números apresentados à experiência coletiva em gráficos, curvas e mapas da distribuição de contágios, ocupação de leitos hospitalares e mortes. Nesta correlação entre números, apresentação imagética e modelos preditivos de ocupação de leitos e contágios, os autores argumentam que este primeiro momento foi marcado pelo ceticismo e pela perplexidade diante da urgência do “achatamento da curva” que acabaram por informar uma tensão exclusivamente dicotômica entre vida e economia. O segundo momento seria caracterizado pela compilação, sistematização e circulação dos dados epidemiológicos das crescentes taxas de contágio e de mortes e do movimento de interiorização do vírus. Para os autores, estes números mediaram as especulações e previsões sobre as possibilidades de ondas e pico de contágios e mortes. Neste segundo momento, portanto, as noções de “ondas”, “picos”, “platôs”, entre outras, transformaram a temporalidade da pandemia: das previsões e modelos sobre o futuro da pandemia, passa-se para uma experiência do presente trágico do aumento diário e incessante do número de mortes. O terceiro momento caracterizado pelos autores seria o momento da vacinação, da explicitação das diferenças geopolíticas da esperança trazida pelas vacinas e das controvérsias em torno da dicotomia entre vida e economia, sobre os custos das vidas perdidas versus os custos do isolamento necessário para contenção do vírus. É neste momento que os autores destacam a emergência de uma “modalidade pandêmica de statactivisme” que se concentra em desfiar os números estatais, inclusive com novas formas de organização entre órgãos de imprensa, instituições médicas e acadêmicas para disputar a confiabilidade dos números que passaram a informar os debates sobre a precificação da vida, custos econômicos do isolamento e as responsabilizações de governantes. O artigo de encerramento deste dossiê, portanto, apresenta importantes contribuições para pensarmos o trabalho dos números na performance (enactment) da pandemia de sars-cov-2 e na mediação da experiência coletiva desta emergência. O argumento final dos autores também é instigante neste sentido. Para eles, a pandemia está longe de ser uma ruptura totalmente nova na experiência social, mas, como demonstram, ela promove articulações originais que sob a mediação de indicadores, E-ISSN: 2176-6665
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números e suas expressões visuais, as quais são acionadas para refazer as tensões da oposição entre vida e economia, da produção de dados e dos efeitos dos números públicos sobre as vidas cotidianas. Nesse dossiê reunimos um conjunto de trabalhos que buscam refletir a partir de questões, objetos e campos distintos, sobre aquilo que fazem os números. Trata-se de uma coletânea acerca da maneira como processos de quantificação, e suas políticas de poder, perpassam os campos mais infinitesimais da vida cotidiana – seja na constituição de políticas públicas, nos processos de visibilização e invisibilização estatísticas de questões/problemas sociais, seja nos processos de subjetivação de si ou na produção de conhecimento. Com esse dossiê buscamos, portanto, contribuir com debates atuais em torno da maneira como os números, em suas variadas formas e escalas, são acionados na produção de narrativas sobre o mundo ao nosso redor. Nesta expectativa, agradecemos a equipe editorial da Revista Mediações e, em especial, a todas e a todos os autores e autoras que submeteram suas propostas ao dossiê, assim como aos colegas pareceristas que contribuíram para a qualificação dos textos aqui publicados.
Referências
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*Minicurrículo dos Autores:
Glaucia Maricato. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2019). Pós-doutoranda junto ao Instituto de Antropologia Social e Cultural da Universidade Livre de Berlim. Bolsista do Programa Marie Sklodowska-Curie (Processo nº 886338). E-mail: [email protected].
Vitor Simonis Richter. Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2016). Pósdoutorando junto ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista PNPD/CAPES (Processo nº 88882.316239/2019-1). Email: [email protected].
Declaração de Co-Autoria: Glaucia Maricato declara ter sido responsável pela “redação da parte introdutória da apresentação, do subitem o papel das classificações e do resumo dos três primeiros artigos.” Vitor S. Richter declara ter redigido “os itens sobre tecnologias de governo e escalas” bem como ter contribuído para a “elaboração da introdução e da apresentação do último artigo do dossiê.” Ambos enfatizam ainda que revisaram, deram ideias e sugestões de redação em relação a todas as partes do texto.