Skip to content

Latest commit

 

History

History
1331 lines (1212 loc) · 84.7 KB

LYRA-FILHO--Roberto.-O-direito-que-se-ensina-errado..md

File metadata and controls

1331 lines (1212 loc) · 84.7 KB

1

ROBERTO LYRA FILHO

O DIREITO

QUE SE ENSINA

ERRADO 2

CENTRO ACADÊMICO DE DIREITO DA UNB ROBERTO LYRA FILHO

PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE DIREITO DA UNB

O DIREITO

QUE SE ENSINA

ERRADO (Sobre a Reforma do Ensino Jurídico)

Brasília 3

CENTRO ACADÊMICO DE DIREITO DA UNB 1980

Pedidos para: CENTRO ACADÊMICO DE DIREITO 4

Departamento de Direito Campus Universitário – Universidade de Brasília (UNB) Brasília – DF

Aos estudantes de direito da UNB Que encomendaram este trabalho.

Feci quod potui, faciant meliora potentes 5

“Uma vez que a coesão ideológica de uma sociedade de classes superpõe-se a inconciliáveis conflitos classistas, criados pelas relações de produção, as classes dominadas, ou grupos específicos dentro delas, tendem a desenvolver subculturas legais que, em certas circunstâncias, podem estar ligadas a uma práxis como legal e esse direito como direito paralelo (isto é, caracterizar a situação como pluralismo legal) e adotar uma perspectiva teórica julgando esse direito não inferior ao direito do Estado – envolve uma opção, tanto científica, quanto política. Ela implica a negação do ‘monopólio radical’ de produção e circulação de direito pelo Estado moderno” (SANTOS, 1977:9).

“A Sociologia do Direito, na medida em que nãos e resolve unicamente em pesquisas empíricas, nem tampouco, é claro, em teoria sociológica, permite entender que o problema do ensino do direito (e também o da ciência jurídica) não estriba simplesmente em lograr uma aproximação maior em direção à prática, ao direito vivo. O ensino do direito em nossas faculdades necessita, igualmente, e de maneira muito básica, duma teoria rigorosa, não dogmática (...); e, na elaboração dessa nova teoria, a Sociologia deverá desempenhar uma função relevante” (ATIENZA, 1978:13). 6

  1. Vocês me convidaram para falar, aqui, sobre um tema de minha escolha, e, diante disso, resolvi tratar do ensino jurídico. Recentemente, quando completei trinta anos de professor, dizia, num discurso, que “meu caminho é o do ensino, modelado segundo os reclamos e expectativas dos estudantes, e não de acordo com tradições mortas e rotinas de robô. A cultura, a experiência, a maturidade do professor de nada valem, se não podem sintonizar, nas ansiosas interrogações do aluno, a fonte dum saber que vem das lutas sociais e se organiza para servir ao progresso” (LYRA FILHO, 1980:5). Esta conferência pretende, agora, desenvolver o posicionamento ali delineado, a propósito dum tema que lhes interessa particularmente. É, por assim dizer, o confronto entre a insatisfação que vocês todos sentem, como estudantes de direito, e o que resultou das pesquisas e reflexões dum professor, que também não está satisfeito com a organização e funcionamento do ensino jurídico. A meu ver, este ensino ainda não corresponde às exigências da atual etapa do processo histórico, em que estamos envolvidos. O Direito que se Ensina Errado pode entender-se, é claro, em, pelo menos, dois sentidos: como o ensino do direito em forma errada e como errada concepção do direito que se ensina. O primeiro se refere a um vício de metodologia; o segundo, à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar. No entanto, as duas coisas permanecem vinculadas, uma vez que não se pode ensinar bem o direito errado; e o direito, que se entende mal, determina, com essa distorção, os defeitos da pedagogia. Vou falar, segundo o meu hábito, com total franqueza; e, portanto, vocês me permitirão que, desde logo, faça uma ressalva. A minha crítica não concerne, especialmente, à Universidade de Brasília, mas à situação geral dos cursos jurídicos, no Brasil e no estrangeiro. Por outro lado, a atitude crítica é, aqui, de todo impessoal. Há excelentes professores de direito; há muitos Departamentos e Faculdades que procuram melhorar o sistema de ensino. Cada qual faz o que pode, nas condições em que se encontra. Mas o importante a destacar é outra coisa: parece-me que existe um equívoco generalizado e estrutural, na própria concepção do direito que se ensina. Daí é que partem os problemas; e, desta maneira, o esforço deste ou daquele não chega a remediar uma situação globalmente falsa. É preciso chegar à fonte, e não às conseqüências. É preciso tentar convencer a todos – vocês mesmos e os meus colegas, professores de que temos de repensar o ensino jurídico, a partir de sua base: o que é direito, para que se possa ensiná-lo? Noutras palavras: não é a reforma de currículos e programas que resolveria a questão. As alterações que se limitam aos corolários programáticos ou curriculares deixam intocado o núcleo e pressuposto errôneo. Se principiamos com a idéia redutora do direito, no chamado ordenamento jurídico – único, hermético e estatal - , já teremos estabelecido, neste 7

primeiro passo, o engano que vai gerar tudo o mais. Nem traria remédio a invocação de vagos princípios idealistas ou de fontes suplementares, no uso, costume ou jurisprudência, desde que o direito estatal permanece, como estalão que regula, com suas normas, a admissão ou rejeição desses acréscimos. Além disso, o costume ou coleção de arestos, geralmente invocados, são os provenientes dos mesmos grupos e classes que produzem o direito legislado. Numa sociedade que assim se divide em classes e grupos, de interesses conflitantes, o direito não pode ser captado, em sua inteireza, sob a exclusiva ótica da classe dominadora. Nem há, em todo caso, um só conjunto de normas sociais, sem contradições. Há, pelo contrário, uma pluralidade de ordenamentos que aspiram a definir o que é propriamente jurídico, isto é, o direito válido, eficaz e corretamente formalizado. Esses ordenamentos lutam pela hegemonia, cujas condições de triunfo ou legitimidade sempre dependem da natureza dos posicionamentos e interesses que as normas refletem. “No mesmo espaço geopolítico, vigora (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica” (SANTOS, 1980:109). Ademais, considerar que o Estado é o organismo que arbitra, mediante seus poderes exclusivos, toda essa disputa social – é esquecer que, antes de tudo, ele participa também do processo que deseja controlar; e, de sua posição, neste processo, é que emerge a legitimidade, constituída e funcional, daqueles poderes. Em todo o caso, a formação mesma de Estado pertence a órbita dos fenômenos jurídicos. Se ele não se apresenta jamais, embora às vezes seja, um instrumento de crua dominação, apela, até nisto, para aspectos, de avaliação jurídica antecedendo à sua estruturação. Dizer, depois, que do Estado organizado, emano todo direito válido é, então, de um ilogismo flagrante. Não se pode admitir como fonte de todo direito o que se pretende juridicamente formado. Ademais, a referência a Estado, em abstrato, mascara diferenças fundamentais entre modelos diversos, fundados em infraestruturas diferentes e com quotas, por isso mesmo, variadas, de legitimação. Um Estado capitalista e um Estado socialista não se constituem da mesma forma, nem servem aos mesmos fins. No plano internacional, encontram-se, inclusive, critérios de estimativa jurídica supra-estatal. Refiro-me aos direitos humanos, que “longe de nascerem duma concessão da sociedade política, hão de ser por esta consagrados e garantidos” (TRUYOL, 1974:11). Aqui, todavia, é necessário evitar que se concebam tais direitos como explicitação de conteúdos perenes, ligados a alguma “essência” metafísica. Os direitos humanos representam a conquista, que não poderia dissimular toda luta social e histórica para estabelecê-los, seja como princípio e parâmetro de avaliação jurídica, seja como elenco de garantias a que se terá de oferecer efetiva substância e eficiência, em toda legislação e aplicação de leis, ou até mesmo contra elas, se preciso for. No plano interno, a pluralidade dos ordenamentos resulta, já disse, da infra-estrutura, geradora de uma divisão em classes e grupos conflitantes, uns dominadores, outros dominados. Numa comunidade primitiva, não ocorre tal pluralidade, exatamente porque inexiste aquela divisão, e as normas sociais, portanto, ganham aspecto maciço, unificado e coerente. Nem aparece o Estado, embora exista um tipo de direitos. Este ponto, bastante polêmico, é muitas vezes desfocado, a partir duma certa visão do direito, que os vincula a Estado. Mas, indago: o que eram as 8

instituições reguladoras da vida social, naquelas comunidades, em seu mais intenso teor imperativo, senão o direito? “O direito, tal como existe nas organizações políticas complexas, ainda que importante, dentro do conjunto de dados etnográficos” (DAVIS, 1973:10). Por outro lado, na sociedade internacional, o processo histórico, donde emergem os direitos humanos, também será subordinado, como resultante, à infra-estrutura do relacionamento entre as nações, algumas imperialistas, outras colonizadas ou semi-colonizadas. Quero dizer, com isto, que os direitos humanos propriamente ditos só nascem ou vigem, na medida em que a sua legitimidade constitutiva e eficácia funcional se polariza no sentido da evolução histórica, em condições propícias das correlações de forças internacionais. E estas só podem ser a situação, em cada etapa, do processo de eliminação das dominações minoritárias e classistas, internamente, e dos imperialismos de nações ou blocos de nações, no plano externo. Daí a constante reformulação daqueles direitos, à medida que novas e mais amplas quotas de libertação conscientizam-se, lutam pelo reconhecimento e se estabelecem, historicamente. Isto resulta claro, se compararmos, por exemplo, as declarações de direitos de ascensão capitalista, como a Revolução Francesa, e as declarações do segundo pós-guerra, já incorporando uma tímida, mas característica, nota social, senão socialista. No aspecto de diretiva interna, é a superação do contratualismo burguês, com a ficta igualdade dos sócio-economicamente desiguais. No plano internacional, é a superação da associação de nações, real ou supostamente soberanas, ante povos e nações colonizados ou semi-colonizados, numa igualdade apenas formal de países imperialistas e, outros mais, independentes (mas não no sentido econômico). Hoje, o pólo da legitimidade jurídica é a igualdade real, sócioeconômica, dos cidadãos e grupos de cidadãos, nas sociedades políticas, assim como das nações, na comunidade dos povos. A liberdade de contratar, de um lado, e o pacta sunt servanda (que é o contratualismo internacional), de outro, não poderiam funcionar (e, efetivamente, não podem), se os contratantes são o lobo e cordeiro. Daí, portanto, as compensações jurídicas, pedindo uma substância maior para aquela igualdade ficta, enquanto se desenvolve o processo que as poderá transformar em igualdade real. Tudo isso exige que se reflita sobre o direito, no que ele é; pois, sem tal reflexão, acabaríamos preconizando um ensino jurídico, o tradicional, que só se transmite a lei do mais forte e chama de não jurídico o direito dos oprimidos (SANTOS, 1977: passim), para afinal negar o que já se chamou “direito natural” de combate (MIALLE, 1978: 123). Nem nos satisfazem determinadas “modernizações” de ensino, cuja finalidade é agilizar o currículo, para servir à ideologia tecnocrática ou ao desenvolvimento capitalista, dependente e atado à dominação multinacional. Isto apenas produz “mão de obra” especializada, para o staff do Estado ou do bi business, na mesma estrutura. Quero dizer que esse tipo de ensino aliena o estudante e paralisa o esforço de pensar o direito da independência econômica e da liberdade políticosocial (LYRA FILHO, 1980 B: 20-21). Para maior clareza, ordenarei a minha exposição em tópicos, forçosamente abordados num síntese muito apertada. Não há tempo, numa 9

conferência para tratar, em profundidade, dos assuntos que, só em muitas horas, poderia rever, sob todos os aspectos. Creio, porém, que isso não inutiliza o meu esforço, por há certa utilidade em recortar o campo a ser explorado, num convite a pesquisas, meditações e propostas ulteriores. Caminharei, dos sub-temas de raio mais dilatado, para o mais restrito, com o propósito de fundamentar a minha tese: a questão de ensino jurídico não pode ser, já não digo resolvida, mas sequer colocada, sem a percepção de que ela está ligada à correta visão do direito. A esterilidade das reformas do ensino, que se vêm, processando, deriva-se de que movimentam, em arranjos diversos, o mesmo equívoco fundamental. Tudo depende do que referimos, quando se trata de direito. Ele admite várias abordagens e o erra está em imaginar que o discurso, feito sobre uma delas, abrange o fenômeno em sua totalidade. Ainda que se pretenda isolá-las, apenas metodologicamente, dá-se a mutilação, pois nisto se perde o vínculo com o devenir e a totalidade; isto é, a transformação constante e o conjunto dos fenômenos, históricosociais, em cujo seio emergem os aspectos diversos do mesmo processo jurígeno. Nesta separação, nem se pode entender o recorte do setor escolhido para análise especial (LYRA FILHO, 1980 A: 13-20). Assim, de nada serve acrescentar o estudo da Sociologia Jurídica, da Antropologia Jurídica ou da Economia ao currículo, se as disciplinas “dogmáticas” permanecem dogmáticas; a Sociologia Jurídica postula a concepção restrita, que considera apenas os “fenômenos jurídicos primários” – isto é, em substância, as “fontes formais” (CARBONIER, 1979: 166-167); a Antropologia Jurídica segue o relativismo cultural (FARACO, 1979: 56-84); e a Economia ministrada esconde o jogo estratégico do imperialismo e corporações multinacionais, em sua intimidade com o Estado (DOS SANTOS, 1977: 37ss e passim). O ponto em foco é que o significante – direito – representa um entroncamento de significados, que designam a realidade complexa, dialética e global do fenômeno jurídico. Um perspectivismo, à GARCÍA MAYNEZ, por exemplo, perde o fio da meada (MAYNEZ, 1977: 36-50), e torna impraticável, não só a correta visão do direito, como um todo, mas inclusive a exata colocação de cada um dos aspectos que se pretenda considerar isoladamente. Não basta reconhecer que vários aspectos do direito existem; é preciso vê-los, no seu entrosamento, sendo esta a única maneira de identificar e esclarecer cada um deles, em especial (LYRA FILHO, 1977: 32). 2. É preciso, portanto, manter em vista o direito, em devir e sob todas as suas formas. Não se trata, porém, de rever o que, historicamente e no conjunto das idéias e instituições jurídicas, formou a série de apresentações concretas, do direito existente e da forma de concebê-lo. Trata-se, ao revés, de extrair desse material as conclusões, em que o reexame particular fica submerso, numa síntese, mostrando o relevo emergente, como o topo do iceberg, no mar das normas, aplicações de normas e doutrinas sobre elas desenvolvidas. O roteiro, a que me referi, é de natureza sociológica, o que, em si, representa uma condensação de dados históricos. Se a Histórica registra fatos sociais, a Sociologia estuda os modelos de fatos, que a História exemplifica. Assim, a análise da Revolução Francesa, em suas causas e peripécias, propõem-se ao historiador, que 10

enriquece, com esta amostra, o patrimônio comum das ciências. Mas, por outro lado, registrando o fenômeno da revolução em concreto, o historiador há de aplicar os modelos que, na análise das revoluções, em geral, a Sociologia lhe ministra: as duas abordagens que são complementares e se escoram, reciprocamente. Daí a conhecida formulação de DURKHEIM, segundo a qual a Sociologia é uma generalização da História. Por isso mesmo, toda História, realmente científica, é História Social e toda Sociologia, não formalista, é Sociologia Histórica, isto é, uma sociologia genética, bem consciente da origem e desenvolvimento dos fatos sociais em exame. GILBERTO FREYRE, muito insupeitadamente, dado o seu talhe conservador e as simpatias decorrentes da sua formação americana, já apontava, naquele ponto, uma deficiência da Sociologia tradicional, nos Estados Unidos. Isto é, a falta “duma perspectiva histórica que nos transmite o estudo das origens, antecedentes e desenvolvimento das formas sociais presentes (...)” (FREYRE, 1975: 496). Aplicando-se ao direito uma abordagem sociológica, seria talvez possível esquematizar os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social verificar, então, como transparecem os ângulos de entrosamento dos diferentes aspectos. Mas, antes convêm assinalar que é imprecisa a menção dum ponto de vista sociológico, pois há diferentes orientações, nesta ciência – como em todas as outras; e estas orientações corresponde, nas suas linhas gerais, ao posicionamento do cientista, no processo histórico-social, em que e, simultaneamente, ator e observador. A análise deste vínculo e suas mediações, desde a situação do sociólogo até o reflexo desta na teoria sociológica, incumbe à Sociologia do Conhecimento. Ela mostra que a participação do sociólogo no processo (o seu implícito ou expresso engajamento) pode gerar ideologia, em vez de ciência, ou aproximar-se da objetividade possível, que SCHAFF denomina verdade-processo (SCHAFF, 1970: 69). A Sociologia do Conhecimento, já o afirmei noutro escrito, é uma espécie de Sociologia ao quadrado (LYRA FILHO, 1972: 16). Será, fundamentalmente, possível distinguir duas visões sociológicas, dois tipos básicos da teoria, a que se prendam os demais subgrupos. DAHRENDORF pretendeu delineá-lo como Sociologia “de estabilidade, harmonia e consenso” e Sociologia “de mudança, conflito e coação” (DAHRENDORF, 1974: 150). Mas está visto que, sendo fundamentalmente um idealista (no sentido até de militantemente antidialético), DAHRENDORF constrói os seus modelos abstratamente, isto é, desligando-os da infra-estrutura, quer enquanto consideração dos fenômenos sociais, quer como elaboração doutrinária (que obscurece, inclusive, as determinações relativas, desvendadas pela Sociologia do Conhecimento). Apesar de tudo, os modelos de DAHRENDORF poderiam constituir um ponto de partida, com o cuidado de logo se retificar o que apontam, enquadrandose numa perspectiva dialética. Os dois modelos talvez pudessem apresentar-se neste esquema: 11

(A) + (B)

Eixo DAHRENDORF

Firme controle social Validado e aceito (mudança limitada)

Organização social legítima

Instituições sociais

Bloco único e consensual de normas sociais válidas

Formação de usos, costumes Folkways e Mores uniformes

Relações estáveis de grupos Tendendo à harmonia

Processos associativos Predominantes

Precário controle social Sob constante desafio Anônimo (mudança ilimitada)

Organização social pela Coerção ilegítima

Sistema de contra-instituições em oposição

Vários blocos de normas sociais disputando a validade

Formação de usos, costumes Folkways e Mores competitivos

Relações instáveis de grupos Tendendo ao conflito

Processos associativos Predominantes

Contraculturas irredutíveis Cultura (subculturas contidas)

Espaço Social 12

Assim, os dois modelos principais da teoria sociológica idealista – (A) e (B) – com a pretensa solução aditiva (DAHRENDORF), através duma espécie de eixo, que polarizaria os elementos centrípetos e centrífugos (tática de remanejamento da teoria sociológica de índole conservadora).

Vou explicar, brevemente, o que tentei exibir aí. Segundo a perspectiva idealista, haveria dois modelos, correspondendo a duas visões da sociedade, com expressão teórica em antítese. Num determinado espaço social – isto é, em certa base geográfica, onde se estabelecem as relações sociais - , o modelo A enxerga a fixação dos padrões de relacionamento estável entre grupos. Esse relacionamento se exprime em bloco único e consensual de normas sociais válidas, agrupando usos (práticas reiteradas), folkways (costumes tradicionais, definidoras da típica forma de satisfazer, naquela sociedade, as necessidades da vida) e mores (o setor mais vigoroso dos costumes, acarretando, na hipótese do descumprimento, as sanções mais severas) (PIERSON, 1979: 292). O arcabouço de normas se firma, em travejamento de instituições (armação estabilizada e sistemática das práticas normadas). O padrão das instituições define o tipo de organização social, revestido pelo controle global que o dinamiza, em garantia da estrutura. No ângulo cultural, encontram-se os princípios que visam a justificar a praxis de convivência, mediante o amparo dum sistema de crenças, consideradas válidas, úteis e eminentemente saudáveis. Nesse contexto, a mudança é minimizada, pois, ou cede ao processo de homeostase (recomposição do organismo, com respeito às suas variedades funções), ou enfrenta os desvios de comportamento e princípios discrepantes (subculturas), como “patologias” e “aberrações” (deviant behaviour). A “resolução” desses problemas sociais reclama, é claro, o parâmetro do que está instituído. Eis, em síntese, o modelo A, que é fortemente centrípeto. A oposição, encontrada no modelo B, desenha uma antítese, em perfeita simetria. Aí temos a predominância dos elementos centrífugos, de tal sorte que toda aglutinação é, em última análise, uma violência ao constante impulso dissociativo, gerado pelo contraste de grupos, cada qual com o seu ordenamento de usos, costumes, folkways e mores, em blocos múltiplos e hostis. Nesta ordem de apresentação, as instituições são, antes, contra-instituições, enquanto se formam, sempre, em pé de guerra e desafiando outras tantas. Por via de conseqüência, uma organização social só pode estabelecer-se precariamente e mediante a coerção sem consenso, dados os padrões opostos de legitimação, com que se defronta. O controle social que exercer permanecerá sob constante ataque anômico, sendo este, porém, à guisa de contestação das normas que se impuseram como dominantes, sob coação (DUVIGNAUD, 1973: 33-37). O modelo A é muito favorecido pelas condições de vitalidade e equilíbrio da estrutura. Não à toa ele aparece como o mais antigo, na Sociologia burguesa. Esta nasceu, como se sabe, na crista do capitalismo recém-chegado ao poder. Foi uma espécie de digestão científica dos princípios sociais que à burguesia convêm, e que na sociedade firmara, com pretensões à eterna duração. O agravamento das contradições sociais, na estrutura posta, logo gerou a crise generalizada, consistente em surtos desorganizadores, que preocupam o 13

poder e os sociólogos conformistas. Em nosso tempo, os sintomas emergem com a clareza que já não cabe negar (BALANDIER, 1970: 13-37). Daí a propagação do modelo B. Em ambos, todavia, notam-se aspectos que evidenciam a escamoteação dos elementos básicos. Em síntese, pode-se dizer que o modelo A é a resposta triunfalista da burguesia assente, sob o aspecto de teoria sociológica. O modelo B traduz, teoricamente, a inquietação de superfície da pequena-burguesia. O que há de comum é a tentativa constante de afastar o modelo dialético, seja otimizado o que ele apontara, na ligação com a infra-estrutura, seja tentando dissolver os mais agudos instrumentos conceituais que a dialética movimenta. Exemplo disto é o esforço para desatar a noção de classe das oposições geradas, pelo estabelecimento de um modo de produção: o capitalista (SWINGEWOOD, 1975: 121). Em DAHRENDORF e outros a estratégia é a mesma: o neo-capitalismo teria desfeito o conflito radical (SWINGEWOOD, 1975: 119 e ss). A escaramuça, em certos tópicos, logo se avoluma, à medida, também, que as coordenadas da crise social traçam ameaças, cada vez mais perigosas, ao contraforte estabelecido. A argúcia de DAHRENDORF está a liderar uma predisposição teórica geral, cooptando o modelo B, devido à vantagem de absorver o lado-conflito, sem reconduzi-lo às determinantes infra-estruturais, que parecem contidas. Trata-se, por assim dizer, da teoria do conflito barulhento, mas dispersado e desdentado (DAHRENDORF, 1969: 213-226). A verdade é que a cooptação tem todas as largas facilidades inerentes ao superficialismo do modelo B. Assim, os sociólogos conservadores, na aparência de modernidade, não têm receio de cravar mais este prego, na ferradura teórica: ele facilita a cavalgada da estrutura dominante. Tudo não passa, entretanto, duma operação plástica, na teoria burguesa, em que o capitalismo é, agora, apresentando como um selvagem que se “civilizou” e está cedendo alguns dos mais luzentes anéis dos seus dedos ávidos. O conceito de classe é, então, levado ao moinho caviloso, para que seus grãos incômodos se transformem no fubá da esquerda domesticada. A operação se consuma no que chamei de “eixo DAHRENDORF” – um socorro do centro à direita em apuros, pondo à ilharga uma esquerda que não assusta ninguém. Todavia, a questão, assim determinada, não poderia, obviamente, servir à visão dialética. Esta logo repõe a infra-estrutura, cortada nos dois modelos idealistas, e daí resulta um modelo bem mais complexo, para superar todo ardil. Nele, incorporam-se os ângulos centrípetos – conservador e centrífugo – anarquista, que estão, sem dúvida, presentes, em toda sociedade, sob pena de não se apresentar estrutura nenhuma, desde que o esquema A é desmentido pelos fatos e o esquema B, ou se dissolve no primeiro, ou dissolve uma ordem social, mais ou menos estável, forte e, apesar de tudo existente. Mas o essencial é que se delineia a posição da infraestrutura. Num esquema global, a visão dialética poderia surgir, talvez, com esta disposição. 14

MODELO PARA ANÁLISE DIALÉTICA SOCIAL DO DIREITO

Controle social global DIREITO IV

Organização Social DIREITO III

Instituições Sociais Dominantes

Bloco de normas sociais da classe (grupos) dominantes (tendendo) ao homogêneo apesar das contradições) DIREITO II

Usos, costumes, folkways, mores da classe (grupos) dominante

DIREITOVIII

Atividade anômica (Espontânea ou organizada) DIREITO VII

Processos de desorganização social DIREITO VI

Contra-instituições

Blocos de normas sociais da classe (grupos) dominada (pluralidades grupais) DIREITO V

Usos, costumes, folkways, mores da classe (grupos) dominada

Cultura da classe (grupos) dominados Cultura da classe (grupos) dominante

DIREITO IX

Superestrutura

Luta de classes (grupos) Classes sociais (grupos) Relações de produção

Modo de produção

Espaço social delimitado

Sistema aberto: contato -> mudança; comunidade internacional; dominações e libertações

Infra-estutura internacional

DIREITO I 15

Proposto o esquema, vou analisá-lo, brevemente, com a ressalva de que este exame sumário não supre outras considerações, mais extensas, profundas e matizadas, que não tenho, aqui e agora, o vagar para desenvolver. Partirei de um ponto de vista, que toma, inicialmente, o direito, em sentido (aliás, pluralidade de sentidos) apenas nominal, na ligação com a substância das relações sociais que essa faixa semântica reveste. Quero dizer que aparecerão, assim, todos os aspectos que sociólogos, antropólogos, psicólogos, historiadores, juristas e até filósofos possam designar com o rótulo direito. Esta primeira abordagem, com a sua amplitude, leva, parece-me, a vantagem de não reduzir o fenômeno jurídico a um de seus ângulos apenas, de acordo com preconceitos doutrinários e postulações arbitrárias. Começo observando que um modelo dialético há de ser aberto e com a preocupação constante de encarar os fatos, dentro duma perspectiva que enfatiza o devir (a transformação constante) e a totalidade (a ligação de todos os segmentos da realidade, em função de conjunto). Disse modelos aberto, pois, embora focalize, em particular, o que ocorreria dentro duma estrutura social, logo fica apontada a coligação com os fenômenos inter-societários, da comunidade internacional, que não se limitam a tangenciar o sistema; ao revés, penetram nele, seja por via de dominações diretas ou indiretas (como na ação imperialista e colonialista ou semi-colonialista), seja no tipo de influência mais suave, do contato e assimilação, que gera mudança (assim na conscientização de aspectos da luta de libertação dos outros povos, que pode auxiliar a dinâmica de classes e grupos, internamente) (LYRA FILHO, 1980 A: 21). Advirto logo que o esquema se refere às sociedades de classes, não à comunidade primitiva, de organização bem mais simples e homogênea, ou a alguma espécie de comunidade final, que seria, por enquanto, projeção futurológica. Nenhuma sociedade existente sequer pretende haver atingido essa etapa. O ponto é mencionado, en passant, tão-só porque alguns autores, do marxismo ortodoxo, admitem o desaparecimento do Estado e do direito, que a ele equivocadamente vinculam, como se o direito estatal fosse o único a merecer a qualificação de propriamente jurídico (LYRA FILHO, 1980 A:12, 18-20, 25). De todas as observações, que passo a fazer, tenha a esperança de que resulte claro: a) que o direito é um fenômeno bem mais complexo do que se postula, ainda hoje, no debate sobre o seu estudo e ensino; b) que as contrações, baseadas nessa camisa de força, desfiguram o direito, não só em termos gerais, mas até na reta compreensão de cada uma dos seus aspectos, sempre isolados, como se fossem compartimentos estanques (LYRA FILHO, 1977:32). A discussão da reforma didática há de assentar, portanto, na revisão do conjunto. Já expliquei que o elemento, referido como espaço social, diz com a base geográfica sobra a qual se estabelecem as relações sociais. Em se tratando de esquema aberto, entretanto, fica destacado que a estrutura aí implantada conserva aquele tipo de vínculos externos interiorizados, que sublinhei como não apenas tangenciais ao sistema. Repito que as dominações interiorizam influxos de poderosa organização, que podem chegar, por exemplo, à desestabilização jurídico-política e ao 16

genocídeo cultural (LYRA FILHO, 1980 A:21). Ademais, a comunidade internacional engloba um feixe de relações – estruturas dominantes e estruturas dominadas -, gerando exteriormente normas que exprimem essa dominação, tanto quanto normas que a contestam. A dinâmica jurídica externa delineia, assim, uma resultante, em que, cada momento, se afere, seja o avanço das conquistas libertárias, seja o estado das dominações renitentes. Aí é que se propõem “aspirações, necessidades, exigências dos oprimidos”, sob o ponto de vista ecumênico, tal como acontece, por exemplo, no “direito à independência” (MIALLE, 1978:123). Noutros termos, o direito internacional, considerado em toda amplitude e profundidade, e não apenas como descrição de instituições, torna-se um campo dialético em que as forças progressistas e conservadoras desenvolvem projeções jurídicas de sua oposição. Nesse aspecto é que surge o DIREITO I, com todas as suas contradições, o que não é destacado, via de regra, pelos internacionalistas, presos a um esquema conservador ou a complexo de inferioridade, perante o acabamento “dogmático” do direito estatal. As condições de permeabilidade, favorecidas pelo contato, podem constituir o rastilho, através do qual se comunica a conscientização e inspiração de ações fundadas no direito de libertação. Este passa a atuar, então, no plano interno, como sensação do atraso da estrutura, em relação às conquistas emergentes, noutros setores da comunidade internacional. Basta pensar, a respeito, na difusão dos posicionamentos anticolonialistas, que se propagaram pelo mundo e vão alentando os esforços libertários setoriais. Esse anticolonialismo já se organiza, inclusive, em termos institucionais, no seio do próprio direito internacional adquirido. Vejam algumas de suas repercussões na resenha de GONZÁLEZ CAMPOS (GONZÁLEZ, 1976: 128-146), uma importante contribuição que merece destaque especial. Consideremos, agora o que ocorre no interior do sistema abstraindo, momentaneamente, a correlação de forças internacionais. O espaço social recebe, em sua base, a moldagem, cujo substrato é o modo de produção, isto é, o tipo de organização das forças de produtivas, gerando relações, de acordo com modelos variados (GANDY, 1978: 11ss). Na infra-estrutura é que aparecem as classes, definidas pelo papel desempenhado no processo produtivo, quando as relações de propriedade estabelecem monopólios dos meios de produção, afetos ao controle de alguns, a que os demais apenas servem (GANDY, 1978: 163ss). A oposição de interesses, entre dominantes e dominados, deste modo aglutina os pólos da cisão, pondo-os na atitude conflitiva. Assinalo, desde logo, que, em tal de condicionamento, se abre um leque de mediações; e as superestruturas nunca se firmam numa derivação mecânica, de efeito e causa com as infra-estruturas. Um dos mais persistentes equívocos, na leitura da síntese de MARX, no Prefácio da Crítica à Economia Política, nasce de um erro de tradução. A palavra bedingt é geralmente transposta como “determina”, “quando a única versão correta é – condiciona –, o que sugere uma idéia mais ampla” (CUVILLIER, 1975:20). Por outro lado, a vinculação do conceito de classe à propriedade e às relações nela delineadas, sugere que o arranco do fenômeno jurídico (e a contraposição dos direitos opostos, invocados pelas classes) emerge na infra-estrutura mesma, se por direito entendemos o que ele mais amplamente designa, e não uma das RESULTANTES da cisão classística, isto é, apenas a que vai dar no direito estatal e faz caso e tábua rasa 17

dos direitos dos dominados. Se estes não são direitos, que são afinal? Insto, sem contar que também se formalizam em normas paralelas e antitéticas. De toda sorte, cabe sublinhar a contradição, surgida na própria infraestrutura, e que forma o núcleo de toda dialética do direito, seja no seu acabamento, em sistemas normativos (plurais e conflituais), seja na influência de retorno que as resultantes normadas possam ter sobre a infra-estrutura mesma; isto é, a wechselwirkung (ação circular, envolvendo o retorno sobre a infra-estrutura, o que não pode ser negado, nem foi, sequer pelos marxistas ortodoxos) (MARX, K & ENGELS, F. , 1977:44). Ademais, o esquema de relações, entre infra-estrutura e superestrutura, não será, hoje, exclusivo ponto de vista dos marxistas, com atesta o sociológo-antropólogo BALANDIER, notando que “conserva inegável alcance teórico”, no próprio campo da antropologia política, e que nela “se inspiram certos antropólogos, frequentemente de maneira inconfessada” (BALANDIER, 1969:184). Eu mesmo devo declarar lisamente que não sou marxista, embora, segundo anotou o pensador católico ARANGUREN, esteja, “como todo homem que realmente pertença ao nosso tempo, sob a influência do marxismo” (ARANGUREN, 1968:12-13). Para marxistas ou não marxistas, parece-me que a visão correta duma uma estrutura social não pode prescindir do reconhecimento de que o modo de produção gera relações básicas e a divisão em classes determina um pluralismo cultural-contracultural. Nesse contexto é que se propõe em pluralismo jurídico, também. E aí radica, por igual, o impulso de toda a dialética social e histórica do direito. A militância crítica à doutrina fechada, que tivesse o fenômeno jurídico enquanto simples norma de classe dominante, substrairia, por outro lado, a dialética mesma, tal como ocorre em muitas direções do marxismo ortodoxo. As simples derivações infra-estruturais encurtam a visão, tornando-a simplista e unilinear (LYRA FILHO, 1972 A: 98). É, numa palavra, e mecanismo. Além disso, importa assinalar que esse vezo despreza uma das mais significativas páginas o próprio ENGELS. Nela vêm apontadas, não só as contradições do sistema jurídico estatal, mas também o fato de que a “expressão brutal, intransigente e autêntica da supremacia de uma classe” iria “por si só contra o ‘conceito’ de direito” (MARX, K. & ENGELS, F., 1977: 37-41, especialmente, 38). (o grifo é meu); e aqui pouco importam as aspas do autor, que se referem à rejeição dos conceitos “puros” (PRESTIPINO, 1977:221). Até alguns autores russos, de nítida posição dogmática e dentro do chamado “legalismo socialista”, já acentuaram que “cada classe social, esteja ou não no poder, tem a sua própria concepção do direito, concepção que não pode ser, e geralmente não é, a que se extrai do direito positivo em vigor” (GOLOUNSKY & STROGOVITCH, 1965: 257). Diante disso, cabe perguntar: em que o direito dos oprimidos, inspirando uma praxis diferente e real (SANTOS, 1977: passim) é menos positivo do que o outro, estatal, que atenderia, embora não sem contradições, à consciência jurídica da classe dominante? Positividade é eficácia social (que falta, às vezes, ao direito estatal); e a presença de juridicidades contrastantes é um fato que vige, no sentido sociológico e histórico da palavra. O problema não é a existência, ou não, de ordenamentos, em pluralidade, cada um aspirando a definir (formalizar em normas, que efetivamente aparecem) o corretamente jurídico. O que cabe indagar é, ao revés, qual o 18

posicionamento exato, diante desse fenômeno inegável, pois obviamente “a consciência jurídica da classe dominante não é igual à da classe dominada; sendo justa para uma, é injusta a outra” (GOLOUNSKY & STROGOVITCH, 1965: 257). Por outros termos, dado o pluralismo jurídico (dialética social do direito), a questão fundamental é de estimativa e opção. Parece-me também óbvio que tal opção há de orientar-se pelo critério estimativo, que não se prende às pretensões de um certo direito formalizados, por um certo poder instituído (o “direito positivo” do jurista tradicional), mas pela legitimidade ou ilegitimidade dos ordenamentos contrastantes, tal parâmetro só pode ser achado na linha do processo histórico-evolutivo global (não, certamente, linear, mas polarizado, em avanços e, às vezes, recuos terríveis, no rumo do progresso democratizador). Uma bela intuição desse pólo teve, entre nós, RUI BARBOSA, quando escreveu que estamos diante dum “sopro de socialização que agita o mundo” (BARBOSA, 1980: 15). A partir da infra-estrutura, as relações que dela emanam e a disputa das classes, é que se arma a modelagem social concreta. Daí, como sugiro, no esquema, os conjuntos contrapostos de usos, costumes, folkways e mores, como gradações das normas sociais emergentes, seja na série ligada à classe dominante, seja, ao contrário em séries que promanam da classe e grupos dominados. Já sugeri que o direito se prende ao elenco de mores (PIERSON, 1970: 285-292). Mas logo ressalvo que o direito não é o que, no elenco de mores, aparece em forma de peculiar e máxima intensidade: isto, pela simples razão de que as normas jurídicas visam a exprimi-lo, com maior ou menor correção, o que nem sempre conseguem, seja por vício de apreensão, seja pelo obscurecimento ideológico, seja pela condicionante desse obscurecimento, que é a posição classística do órgão produtor das normas. O direito mesmo é a mola propulsora de todo o processo normativo especial (a produção de normas jurídicas), na mesma linha de toda ética social legítima. Para valoração das formulações opostas, é preciso, indeclinavelmente, captar a direção do processo histórico, onde reside o parâmetro atual (nunca fixo, não derivado de conteúdos perenes, mas aparecendo, por assim dizer, num vetor, que indique o estado da consciência jurídica de vanguarda que se torne possível, dentro daquela conjuntura). Em síntese, direito é aquilo que, como resultante do processo global (e, não da colheita em cavernas platônicas) transparece, como possibilidade da concretização de justiça social, em normas de peculiar intensidade coercitiva. Terei algo a dizer, adiante, sobre a especificidade do jurídico, enquanto venha a estabelecer-se, em confronto com a estimativa ética geral. De qualquer sorte, ele se põe, socialmente, com ligação à natureza de estabelecimento do justo. E aí estaria a tentativa de não oposição ao que lhe constitui o conceito, segundo a sugestão, já referida, de ENGELS. Por isto sempre reivindica a própria legitimidade e autenticidade, ainda quando, de fato, a contraria, por desfocalização ideológica ou má-fé. Ninguém, mesmo formalizando o antidireito, proclama que o faz. Antes, procura resguardo nalgum apelo à vontade popular, à inspiração divina ou que critério lhe ocorra, inclusive o da divindade própria de algum potentado, que assim pretende normar, não por si, mas através de si. Nem o mais descarado ditador se arroga o simples e próprio voluntarismo, exceto na medida em que tal voluntarismo seja por ele identificado como o critério exato de orientação jurídica. Acha, então, que He knows Best, isto é, que, melhor do que outrem, sabe que é justo. Essa barretada, honesta ou hipócrita, eleva o direito à sua posição enquanto 19

não confunde o critério de formalização, a dição jurídica, e o que ele é. O direito estará, se bem captado, na norma, porém, não é a norma, que apenas o diz. Daí a existência de legalidades opostas, desde a non scripta Lex, natural, divina ou costumeira, até as leis do Estado ou as normas contratuais que se lhe opõem. A pretendida hegemonia do direito estatal é um artifício político, mediante o qual o poder instituído aspira a eliminar as próprias contradições jurídicas da sociedade em que emerge, dando-se por árbitro da justiça social, numa “expressão coerente em si mesma” (MARX & ENGELS, 1977: 38). Mas as contradições subsistem, seja na ordem da própria formalização normativa estatal, seja no substrato sócio-econômico, que ela deseja moldar. Daí a disputa de ordenamentos. O estado sempre vê frustrada a sua pretensão, pois não logra erguer-se acima das contradições de que ele próprio emerge, nem pode esgotar o jurídico, em sua produção normativa, sem apelar para um sobredireito, que lhe desse tal legitimidade constitutiva e funcional, de órgão único da expressão normativa. E ainda existe a considerar, sem dúvida, que o Estado assim se apresenta, nos graus duma legitimidade que oscila, desde a mais ampla quota democrática até a feroz imposição autoritária. Também isto é um problema jurídico, pois o “direito positivo”, naquele sentido restrito do jurista conservador, postula um “metajurídico-positivo” que a tal positivação juridicamente legitime. Toda dição, além de carregar o ônus da legitimação do órgão jurígeno (que, em si, é jurídica), terá de se apresentar como projeto de dição, sujeita a desvios e subordinada ao corretivo, seja mediante processos autoregulados, seja por critérios “não positivos” (no sentido de não ínsitos num ordenamento). Pois tal regulação e o conteúdo mesmo das normas eventualmente ferem o direito, em globo, a que se reportou, fatalmente, o órgão normante, dando início ao pretendido monopólio. No esquema, acrescentei, sempre, ao termo – classe –, a palavra mais ampla – grupo. É que a dialética dos normas sociais, em geral, e, em particular, das normas jurídicas não se reduz inteiramente à oposição de classes (SANTOS, 1977:9). Ela pode inserir-se na reivindicação de legitimidade, como posicionamento de grupos que não representam diretamente o contraste de classes, entendidas estas últimas como o posto ocupado no modo de produção. Assim, por exemplo, como nota MIALLE, certas minorias étnicas, regionalistas, sexuais, “que exigem o direito à diferença” (MIALLE, 1978: 123). O ângulo mais geral será, todavia, aquele a que estão, em última análise, ligados os processos secundários, isto é, a reivindicação das classes dominadas para indicarem outro tipo de Estado” (MIALLE, 1978: 124), que realize o modelo mais justo, no sentido em que o define a etapa do processo histórico democratizador. Aí, sem dúvida, fica revelada, ademais, a ambigüidade do conceito de Estado; pois ele pode ser visto, de um lado, como estrutura de dominação e, por outro, emergir como veículo para estabelecer a alternativa efetivamente democrática (LYRA FILHO, 1972: 103). Isto parece claro; pois, de outra forma, que razão haveria para falar num Estado socialista? Nenhum Estado, afinal, paira acima das lutas sociais, como árbitro isento. O Estado sempre será inserido nelas. Quando existe, ele é apenas um sistema diversificado de órgãos, com aspiração a monopolizar o poder social; e, portanto, a sua eficácia, tanto quanto a legitimação, constitutiva e funcional, depende da maneira por que se ajuste, num momento dado, ao processo social. Isto é, depende da sua vinculação ao movimento da 20

História para frente, ou de seu comprometimento com formas de paralisação ou retrocesso. Neste perspectiva, a cultura, que imanta com princípios as formas de controle social, é apenas um aspecto do mesmo processo. Ela engloba, na sua pluralidade efetiva, governada pela pluralidade de grupos e classes, confessos ou incontestáveis, quanto a consciência reta e possível, a exata orientação no rumo do conhecimento objetivo e dos valores polarizados pelo progresso social, num momento dado (CUVILLIER, 1975: 14-30). Continuará, decerto, presente uma clivagem, entre cultura como projeção das diretrizes que guiam a classe dominante e contraculturas; isto é, subculturas, no sentido de que não chegaram ao poder social mais difundido, realizando a sua pretensão de generalizar-se. Assim, desafiam o que está posto, no stablishment. Nessa acepção é que falo de comportamento anômico, isto é, a posição militante que nega uma parte ou todo o conjunto de normas do poder social instituído, assim como a série de princípios em que se lastreia e com os quais pretende justificarse.É evidente que a presença de contraculturas exprime a existência das classes em oposição ou, secularmente, de grupos contrapostos. Aqui, a referência a grupos volta ao fenômeno, já assinalado, de contradições não diretamente vinculadas à divisão de classes. Deste modo é que se concebe, por exemplo, a pesquisa de comportamento anômico em qualquer estrutura social, capitalista ou socialista. Vejamse, por exemplo, as investigações de PODGORECKI, sobre coeficientes de anomia na sociedade polonesa (PODGORECKI, 1996: 212). Dentro desse quadro, o processo jurídico geral vai desvendando seus aspectos. O DIREITO II seria a formalização de normas, ainda não instrumentalizadas em leis e correspondente ao DIREITO V, enquanto este éa produção correlata, nas classes e grupos dominados, e aquele, a formação do elenco, em última análise, vinculado a classes ou grupos dominantes (a ressalva – em última análise – tende a destacar as contradições de cada série, uma vez que o DIREITO II, como toda produção normativa da faixa dominadora, não é, mecanicamente, e tão-só, a tradução de seus interesses e posicionamentos). O DIREITO III representa o substrato das normas de préconstituição que governam a formação do aparelho estatal. Nenhuma constituição, como nenhum poder constituinte, pretende autoregular-se arbitrariamente, mas extrai de modelos prévios o que se lhe afigura como assento da própria legitimidade. Ao DIREITO III corresponde obviamente o DIREITO IV, na medida em que este compendia modelos diferentes de pré-constituição, exprimindo o teor de propostas do “outro Estado”, isto é, de substrato diferente. O DIREITO IV é o ÚNICO geralmente focalizado, na organização tradicional dos cursos jurídicos, inclusive quando se abre espaço para os princípios de direito “não positivo” ou costumes (da mesma classe ou grupo); pois, ainda assim, igualmente se reconhece ao DIREITO IV, na visão conservadora, o poder de aniquilar princípios e costumes, e até legalidades, que contrastem com suas normas expressas. ESTA, A GRANDE DETURPAÇÃO. Ela faz de um incidente, sem dúvida relevante, mas parcial, a imagem da totalidade do fenômeno jurídico. O reverso é, evidentemente, a ação anônima, espontânea ou organizada (DIREITO VII), de classes e grupos que desafiam algum aspecto ou, mesmo, a totalidade do sistema instituído; e desemboca 21

no DIREITO VIII, em que se aperfeiçoa todo um sistema alternativo, para substituição global do que está em função. O DIREITO IX, que fica no entroncamento dos processos internos e externos, isto é, entre o DIREITO I e tudo o que se processa nos demais, seria a formulação, perfectível, em progresso, em devenir, da totalidade na dialética externainterna do direito, abrangendo o que se possa delinear, para qualquer direito emergente, num dos aspectos parciais, setoriais (LYRA FILHO, 1972 A: 111-112). Nesse âmbito, aparecem os chamados direitos humanos, com pretensão ecumênica. Note-se que não me refiro às declarações de direitos humanos, que desejam exprimir o DIREITO IX, porém a este mesmo, que nelas aproximadamente se reflete. Por outro lado, não se trata da cristalização de qualquer “essência” metafísica, mas do vetor histórico-social, indicando o que se pode ver, a cada instante, como direção do progresso da humanidade, na sua caminhada histórica. Essa resultante final (final, não no sentido perene, mas no de síntese abrangedora do processo jurídico em sua totalidade e devenir) se reinsere, de imediato, no processo, uma vez que a história não pára. O DIREITO IX seria, então, a chave de abóbada para todo o ensino jurídico, arrimado em uma Antropologia Filosófica de base (GOULIANE, 1968: passim) e na coordenada de estudos históricos e sociológicos, inclusive econômicos. Estes, torno a ressaltar, também não visariam ao estabelecimento da grande mixórdia de contribuições interdisciplinares: a Antropologia Filosófica retoma o esquema antropológico de base (LYRA FILHO, 1972 A: 32; 45-68), evitando que a “autonomia” de saberes parcelados criem, pela simples adição, a confusão de direções, posicionamentos e doutrinas, que a Sociologia do Conhecimento leva à sua raiz e a Filosofia Jurídica se dedica a re-pensar em sua totalidade (LYRA FILHO, 1972 A: 44-45), na perspectiva crítica. Como não temos, atualmente, senão cursos do DIREITO IV, com raros orifícios curriculares onde se possa inserir a visão coerente (quando aparecem, é no rol das disciplinas “facultativas”), o DIREITO IX jamais emerge, no desenvolvimento do curso jurídico “normal”, seja isoladamente, seja na integração em todo exame de conjuntos normativos. O próprio DIREITO I, desdenhado, relegado para a franja descritiva de instituições “imperfeitamente jurídicas”, não costuma focalizar a infraestrutura, as contradições, a inserção no processo jurídico, em termos globais. Deste jeito, o ensino do direito não tem pé (um suporte de reta focalização histórica, econômica e sociológica), nem cabeça (uma filosofia jurídica), mas apenas mão, para o soco alienante do DIREITO A, que não admite contraste. 3. Antes de encarar o roteiro que nos vai oferecendo uma visão nova do problema do ensino jurídico, resta uma questão, que é talvez a mais delicada e sutil. O positivismo, em abordagem que se concentra no DIREITO IV, não tem grandes dificuldades para definir a órbita do jurídico, segundo a sua perspectiva. Ele a liga, fundamentalmente, ao Estado e vê, portanto, o Direito, entre as normas sociais, como algo que se distingue, na medida em que vem assentado, fundamentalmente, no sistema de leis e princípios que os órgãos estatais recortam, formalizam e impõem. Ou pretenderão impor, já que nem sempre o conseguem. O grande erro desta redução está num duplo corte mutilador. Seu primeiro aspecto é a confusão entre as normas que enunciam o direito e o direito mesmo, que nelas é enunciado. O segundo aspecto do mesmo erro é o que, a pretexto de melhor assinalar o que é, afinal, jurídico, nega vários aspectos e setores do direito. 22

Vamos ver, ligeiramente, em que se concretizam tais deturpações. Se dizemos, a propósito do direito, que este é as normas estatais, além de contrair-se, arbitrariamente, a dialética do jurídico, fica em aberto o que mais normas pretendem veicular. Isto é, o passageiro é definido pelo automóvel e tudo que nele transita é o passageiro. Se o motorista põe ali um saco de batatas, este saco passar a ser batata jurídica pelo simples fato do depósito. Isto, ainda que batata não seja direito e a batata juridicamente, podre e inedível. A escamoteação, assim consumada, já se chamou “toque de Midas”, pois, como no caso do rei lendário, tudo o que ele toca se transforma em ouro. Mais: como, por outro lado, ao aparelho estatal, e só a ele, é deferido o poder seletivo do que se insere na proceituação jurídica, o direito, com aquela seleção, passa a ser a vontade do Estado nua e crua. Aí não se atenta para a conseqüência fatal: é que a ótica positivista “desjuridiciza” o Estado, de vez que ele passa a ser metajurídico, enquanto produtor de todo direito. Mas, se o Estado não é jurídico e, sim, jurígeno (pois, em tal caso, até as normas jurídicas reguladoras de sua constituição e funcionamento são estatais), em nome de que direito ele se arroga o poder jurígeno mesmo? Trata-se, então, dum ato puro e simples de dominação ilimitada. Essa perspectiva, que não admite um direito supra-estatal, seja qual for a modalidade do legalismo, que ali se implante e tenha por jurídica, já foi denunciada pelo sociólogo polonês, PODGORECKI, no traçado de um círculo vicioso: “advogados e juristas, educados no espírito do legalismo dogmático, nas esferas civil, penal ou administrativa, acreditam que o direito é definido por sua validez, ou por sua produção pelos órgãos estatais autorizados. Não parecem preocupar-se com a natureza obviamente tautológica de tal posição. De fato, se direito é o válido, e o não-válido não é direito, surge uma questão: em que princípio se baseia a própria validade? Os que dispõem a desprezar a tautologia responderiam que o válido o é, por ser jurídico. Alguns advogados dogmáticos mais escrupulosos modificariam ligeiramente essa posição, dizendo que o que é válido o é, porque um poder autorizado assim o gerou. Mas, autorizado por que princípio? Um princípio legal, é a resposta. Assim reaparece a tautologia, embora em círculo maior” (PODGORECKI, 1973: 65). A outra face do mesmo erro leva o positivista a negar “positividade” ao que não é o direito estatal, que se propõe como dogma. Neste caso, temos o leito de Procusto. Se existem, como vimos, direitos não-estatais, na dialética global do jurídico, afirma-se que na verdade tais direitos não são um direito direitinho, pois que o são impropriamente, insuficientemente, ou de todo não o são. Como no caso do famoso bandido, se a cama é curta, deita-se ali a vítima, para esticá-la e, dessa maneira, levá-la à morte. Se a vítima é mais comprida do que a cama, nenhum problema: corta-se o que sobrar... Com isso, desaparece todo e qualquer direito que não seja de fonte estatal, como o direito de resistência às suas determinações antijurídicas, até os direitos que se estabelecem acima dos Estados como o direito internacional. Este será, pelo jurista dogmático, entendido como um “menor desamparado”, a não ser que, um dia, apareça o mítico Estado Universal. De outra parte, dois fatos óbvios são negados. O primeiro é a existência de normação jurídica nas sociedades em que não há Estado – o que qualquer antropólogo demonstra ser inexato. O segundo é que fatos jurídicos, tais como o poder 23

constituinte, para que apela o Estado em sua origem, passam a ser algo não-jurídico. Sobretudo, não há falar em direitos humanos, ou coisa que os valha, pois direito não são. E aí chegamos à anedota da nave, que era maior por dentro do que por fora, uma vez que os princípios de pré-constituição do direito estatal não seriam jurídicos e o Estado, como órgão jurídico, então, concebe de si mesmo a dá à luz, ante nós todos, à jurisdicidade que se arroga e as derivadas jurídicas por ele mesmo produzidas. Neste caso, é no ventre do filho que surgem o pai e a mãe... Que visão mais ampla corrigiria esse parto monstruoso? Consideremos a realidade, tal como ela é. A interação humana de classes, grupos, povos exige que a liberdade de atuar, em cada sujeito, individual e coletivo, se limite por algo mais do que o bel prazer dos agentes. O controle espontâneo é anárquico e já tive ocasião de satirizá-lo, falando na cirandinha social, dançada por uma coletividade de anjos (LYRA FILHO, 1980 A: 12). Se não há controle espontâneo dos agentes, mas, ao invés, normas coercíveis, ou estas descobrem a própria medida e estalão, ou se tornam oposto da anarquia, isto é, a opressão arbitrária, enquanto pretenderiam legitimar-se pelo simples fato de existirem. A aberração, no caso, gera uma outra dificuldade, pois nem sequer há um só conjunto de normas na sociedade, e, sim, conjuntos em oposição, sendo o produzido pelo Estado apenas um deles. Nesta obstrução, e admitindo-se que atinássemos com qual dos conjuntos teríamos de haver-nos (seria com todos eles?), só restaria o dilema de nos submetermos ao que desse e viesse, ou negarmos tudo, sonhando com um paraíso em que, de norma, só houvesse a Norma Benguel... Ao revés, parece óbvio que é preciso confrontar todos aqueles conjuntos com critérios de legitimidade, na medida em que eles se apresentam como normas coercíveis e afetam a liberdade de indivíduos, grupos, classes e povos. Nesse plano é que o pensamento idealista estabelece a sua tendência ao dualismo. A moral se biparte entre o tipo ideal, absoluto, superior e perene e o tipo comum, real, variável e inconsistente, de morais contrapostas. Isto deixa cada um perante o relativismo, que de novo aceita o que der e vier (contrariando a índole de toda norma que é preceituar o que se acha cabível, justificável e conveniente), para desembocar no amoralismo, pois tanto vale dizer que valem todas as normas eficazes, como dizer que não há mais do que valores sem estalão, que seriam, desta maneira, valores que não valem nada. O modelo absoluto, que confortaria os demais, fica lá longe, numa caverna platônica; aqui, na planície em que vivemos, só se distinguiriam certas imposições convencionais, que nada justifica, a não ser o argumento inconveniente e perigoso de que se justificam porque a nós se apresentam. Assim, a cisão idealista acaba entregando o que é válido à impotência, e o que é coercível, sendo carente de legitimação, termina relegando á violência da imposição arbitrária. Isto, quando as duas coisas não se conjugam; pois aquela moral absoluta do idealismo é, muito frequentemente, com a aparência de coisa que caiu do céu, por graça de Júpiter, ao invés de ter sido gerada na terra, por malícia de Creonte. Não vou estender-me nesse tema, senão para lembrar que uma concepção dialética do que é moral já enfrentou o dualismo solerte. O parâmetro está, de novo, no processo histórico (VAZQUEZ, 1970: 40-47 e passim). Não se trata de duas ordens de princípios – uns, absolutos; outros, históricos; uns, sacados a modelos eternos; outros safados pela conveniência de grupos, classes padrões de convivência, 24

de ordenamentos diversos, coexistentes, obedecendo, em última análise, a divisão da infra-estrutura em classes e, secundariamente, em grupos, cuja posição social gera interesses e propósitos conflitantes. A resultante de legitimidade obviamente dependerá, então, do posicionamento das normas oriundas dessas classes e grupos, ou até povos, no processo histórico, entre liberdade e opressão, minorias dominadoras, minorias oprimidas e maiorias desamparadas. Dessa forma, no direito, a oposição entre um direito natural, fixo, eterno, e os direitos que classes, grupos e povos geram e opõem. “A deficiência maior do iurisnaturalismo clássico é separar os objetivos sociais e os juízos de valor, ou os valores mesmos, atribuindo-lhes uma existência como que acima do que ocorre no processo histórico-social” (LYRA FILHO, 1980 A: 18). Nesse contexto, o “conflito entre o direito eventualmente formalizado e o projeto progressista (desenvolvimento rumo ao modelo superador) há de ser deslindado, segundo o parâmetro da continuidade histórica e das rupturas (na substituição, também histórica, de modelos). Isto, sem que o direito formalizado se ponha de um lado (direito “positivo”) e o direito “justo” de outro (direito “natural” idealista). Ao limite, cumpre assinalar que a justiça é meramente a concretização das quotas de libertação, na ultrapassagem e dentro do processo histórico” (LYRA FILHO, 1980 A: 19). Em síntese, o parâmetro está no DIREITO IX, enquanto ele propõe a síntese, em cada momento, do que significa o movimento progressista, nas suas projeções jurídicas. O que cabe perguntar, entretanto, nesta altura da exposição, é o que pode, nos conjuntos de normas sociais, emergir como propriamente jurídico. As séries de normas, contraditórias, opostas, em pugna, sejam elas jurídicas ou morais, estão imersas no mesmo processo e podem ser avaliados, na medida em que o estalão legitimamente, para toda opção, é o apex, designado pela direção daquele processo e seu estado, na presente etapa. Nisto, indaga-se, que poderá distinguir as normas jurídicas? O critério mais difundido, para esse fim, destaca algumas características. As normas jurídicas seriam heterônomas, coercíveis, mediante sanções organizadas, e bilateralmente atributivas. Eu mesmo já utilizei esses elementos (LYRA FILHO, 1972 A: 121 e passim). Mas, em reflexão posterior, eles me pareceram mais frágeis do que imaginava. Em primeiro lugar, queria repetir que, procurando os elementos do direito, nas características da norma jurídica, há uma inversão consistindo em buscar o que nelas se vaza, no veículo expressivo e comunicativo que elas são. Advirto que esta ênfase nada tem a ver, porém, com a concepção do direito como alguma essência extraterrena, metahistórica e metafísica. É apenas a distinção entre o que chamei de veículo e passageiro. Em segundo lugar, as próprias características formais, assim propostas, não se revelam muito precisas e consistentes. A heteronomia sugere a índole de coercibilidade externa, com que se confunde, pois heteronomia é o oposto de autonomia e significa a sujeição a um querer alheio. Assim, o direito, exterior, e como norma coercível, nos afetaria, enquanto imposição a que cumpre obedecer, sem que isto dependa de interiorização e de íntimo convencimento. A cisão, que é de origem kantiana, desmente, no seu individualismo ético (“a lei moral dentro de mim” e a lei jurídica a mim pro-posta e im-posta), a 25

heteronomia da moral, enquanto comando de origem social, não subjetivamente autócne, mas intrasubjetivado (GOLDMANN, 1970: 104 ss). Ademais, o direito, enquanto reivindicação jurídica, na conscientização dum posicionamento e projeto, igualmente apresenta aquele aspecto interior, por autores marxistas (SZABO, 1973: 13 e passim). A moral, vista como perfeitamente autônoma, esquece que o superego admite ou rejeita o que, em grande parte, é apenas a intrasubjetivação do que classe social, educação e ideologia inseriram no sujeito. A moral, repito, não é subjetivamente autóctone; tampouco, é claro, o direito. Numa perspectiva dialética, ambos são, simultaneamente, “heterônomos” e “autônomos”; e a nossa liberdade de opção, longe de concretizar-se na negação das intrasubjetivações do social, está na conscientização de que elas existem, para a libertação de sua modelagem e a visão mais objetiva. O direito, assim, como a moral, funciona, exteriormente, como resultante do processo social de regulação da conduta, na medida em que o captamos (avaliando as diretrizes contrapostas que estabelece, em pluralidade de normas). Nele, projeta-se, como opção de indivíduos, grupos, classes, povos a “síntese de necessidades e liberdade, coligadas à praxis” (LYRA FILHO, 1972 A: 123). Isto é, na descoberta da “posição relativa”, na estrutura, e na reorientação dela decorrente, em moral ou em direito, se reinstaura “a dialética do possível subjetivo, diante dos imperativos das normas objetivas”, para a determinação dos “rumos do processo histórico” (LYRA FILHO, 1972 A: 62). Daí moral (ou direito) “de realização”, que abre espaço a novas conquistas, enquanto se opõe à moral (ou direito) dos arranjos dominantes (LYRA FILHO, 1972 A: 62; GOULIANE, 1968: 210). Há, portanto, na norma jurídica, tanto quanto na moral, “heteronomia” e “autonomia”, tanto quanto coercibilidade, pois, ao lado das sanções jurídicas, funcionam as que não são apenas o mecanismo interior em que se estabelecem “dores de consciência”, porém muito mais do que isto: sanções externas, de grande poder e violência, golpeando o comportamento desconforme. Dir-se-á que as sanções sociais, acompanhando a norma de tipo moral, são menos precisas – sanções difusas, no vocabulário sociológico –, ao passo que as jurídicas são sanções organizadas e armam a coercibilidade mais forte. A esse respeito, falarei mais adiante. Primeiro, entretanto, desejaria examinar a chamada bilateralidade atributiva. Ela importa em dizer que o direito, ao contrário da moral, é uma relação em que dois sujeitos se contrapõem, um deles com o poder de reclamar o que ao outro cumpre fazer ou deixar de fazer. Isto adviria de que a norma jurídica aparelha o direito com uma referibilidade a sujeitos contrapostos: o que tem o dever jurídico e o que tem o poder jurídico de exigir o respeito ao padrão de conduta a que o outro está obrigado. Bem ponderada essa característica, não vejo como se ausente das normas morais, em que o grupo, classe, até, eventualmente, a sociedade inteira se investem no “direito” de reclamar o correto procedimento moral e lenta, o procedimento tido como aberrante. “O ato moral, como ato de um sujeito real, que pertence a uma comunidade humana, historicamente determinada, não pode ser qualificado senão em relação a um código moral que nele vigora” (VAZQUEZ, 1970: 65). Diria, melhor: um dos códigos morais, conforme a pluralidade de ordenamentos que se estabelece na sociedade dividida em classes e grupos, ou até na comunidade 26

internacional, dividida em nações e povos, como variada posição. De qualquer sorte o ato moral é, sempre, “um ato sujeito a sanção dos demais, isto é, passível de aprovação ou desaprovação de acordo com as normas comumente aceitas” (VAZQUEZ, 1970: 61). Se admite um sancionamento, admite-se uma atribuição bilateral, havendo pessoa, grupo, classe, ou que outro órgão coletivo caiba, para aplicar a sanção. Dir-se-á que tal sanção é muito menos precisa do que a jurídica; seu poder de coerção, menos intenso; o órgão aplicador, menos precisamente indicado; o procedimento para infligi-la, de tipo mais fluido. Por outras palavras, aqui emerge a questão das sanções morais, enquanto sanções difusas, em oposição às sanções jurídicas, enquanto sanções organizadas, com órgão bem estabelecido para a aplicação e procedimento mais claramente regulado. Este aspecto é o mais persuasivo dos que se apresentam a exame e, por isso mesmo, alguns autores concentram nele a melhor maneira de separar a norma jurídica. Assim, para o Eminente ELIAS DÍAZ, autor da mais rica e atualizada obra didática da sociologia e filosofia jurídica, “radicaria aqui o critério básico diferenciador entre ética e direito” (DÍAZ, 1980: 26). Com a devida vênia do ilustre colega espanhol, não posso aceitar sem ressalvas, a afirmação, notadamente porque ele ainda a realça, afirmando que só o direito é coercível; que a moral, em sentido próprio, exige “condutas não forçadas” (DÍAZ, 1980: 26), isto é, livremente aceitas. Parece-me que pesa, contra essa afirmação, mais do que uma divergência teórica; pesa, contra ela, toda a força de análises psicológicas da intrasubjetivação de padrões alheios à “autonomia” do sujeito; pesa, contra ela, a existência externa de coercibilidades morais, com sanções difusas e até, acho eu, organizadas; pesam, contra ela, enfim, as investigações da sociologia, da antropologia e da história. Mais aceitável seria a afirmação de que as sanções jurídicas são propriamente organizadas, naquele sentido técnico já referido; sanções especiais. Ainda assim, tendo certa dúvida, pois me lembro da organização de formas costumeiras do sancionamento moral, como o “gelo”, os procedimentos bem precisos de marginalização, que afastam o moralmente infamado, retirando-lhe privilégios inerentes às pessoas tidas como “idôneas”, o acesso a locais de recreação ou apetecíveis e superiores formas de emprego e trabalho. Sanções difusas? E a “bola preta”? Essa crítica não tem o propósito de aniquilar totalmente a distinção consagrada; visa a pô-la num nível mais modesto, que é o de mera gradação. Eu não hesitaria em afirmar que a norma jurídica é mais intensamente heterônoma; sua bilateralidade atributiva é mais precisa; a sua coercibilidade mais marcante, sobretudo nisto que as sanções organizadas são também mais exatas, na determinação dos órgãos e procedimentos. Apenas isto, entretanto, que nega uma separação essencial entre os âmbitos moral e jurídico, quanto ao tipo de norma. Não quero dizer que, por tal motivo, os ordenamentos jurídicos e morais se confundam em tal medida que, num e outro, o conteúdo das preceituações seja idêntico. Há, aí, duas coisas que não se deve confundir: a primeira está em que é preciso convir em que a diferença do tipo de norma não emerge com a nitidez pretendida. A segunda é que essa fluidez do balizamento formal, não importa na identidade da preceituação, a cada momento: isto é, podemos ter, simultaneamente, até no mesmo nível (de classes, grupo, povo ou nação) sistemas de normas morais e de 27

normas jurídicas de conteúdo independente e, mesmo, oposto. Essas contradições existem e podem ser observadas. A unidade do ordenamento jurídico e moral, em que as normas se aglutinam, não apenas formalmente (pela carência de nitidez do tipo de normação), mas até substancialmente (pelo sentido maciço, praticamente unívoco, das preceituações), é evidentemente, a comunidade primitiva. ROGER PINTO sintetiza isto, embora com o emprego de rótulo impreciso – “sociedades arcaicas”. Nestas, diz ele, “se verifica que moral e direito não são diferenciados, como também não as normas sagradas, estéticas ou técnicas” (PINTO, 1969:73). Isto não quer dizer, entretanto, que aí não exista um direito. Quer dizer, sim, que direito e moral são unívocos; mas qualquer antropólogo mostraria que direito existe, e até sanções organizadas mais intensas. Acrescentarei, no fecho desta meditação e na tentativa de captar o direito em globo, pretendendo evitar as postulações idealistas ou as reduções do positivismo, ela aponta um caminho em três etapas. A primeira é a que tentei expor, numa abordagem do fenômeno jurídico, em perspectiva sociológica, abrangendo todos os aspectos da manifestação do direito, a partir dum conceito nominal. Essas duas etapas constituem os dois tipos de estudos básico e preliminar. A terceira será, evidentemente, um reencontro global, para que acenei, como tarefa da filosofia jurídica. A ontologia que aí se esboça, contrapondo-se ao idealismo, também não é uma simples articulação dos dados empíricos e, sim, uma reelaboração deles, em busca das “categorias, como formas do ser e determinações da existência” (cf. LUKÁCS, 1972: passim), isto é, no salto ontológico em que a realidade do ser é deduzida, geneticamente, de suas formas de transição (LUKÁCS, 1972: 12 e passim). Seja qual for a crítica feita à realização, aliás fragmentária, de ontologia lukácsiana, o seu projeto e intenção parecem-me especialmente fecundos e de índole autenticamente dialética. A esta altura das minhas reflexões, já sugeri que enxergo o direito, em globo, como teoria e praxis das possibilidades de concretização da justiça social, em sistemas de normas cuja intensidade coercitiva é particularmente acentuada. Ele está obviamente ligado à política, no mais amplo sentido (não sectário, partidário), à praxis humana, à história e aos pólos do processo histórico. A abordagem filosófica refocaliza o que o material empírico-científico lhe traz ao moinho da razão histórica e dialética. Direito, então, assume o aspecto geral de setor da praxis social de maior força vinculante, que visa, à justiça, através de normas indicando procedimentos e órgãos mais nitidamente demarcados do que em outros tipos de regulamentação da conduta. Nesse ângulo, é que o DIREITO IX nos ajudaria a ver que as contradições de pluralidade de ordenamentos, alguns dos quais flagrantemente injustos, pertencem à dialética do direito mesmo, que não se reduz a nenhum dos seus aspectos, seja ele situado na ordem das legalidades estatais ou em quaisquer outras legalidades competitivas (SANTOS, 1977:9). Não importa que apareçam vários sistemas jurídicos, realizando falsamente o propósito ontológico; a própria existência de empanamentos ideológicos e dominações, resguardadas por normas jurídicas, notadamente no setor do DIREITO IV, sempre faz, em última análise, uma verdadeira homenagem à ontologia jurídica, na medida em que, produzindo injustiça, ainda assim reclama, por má-fé ou equívoco, o elemento justiça, no seu procedimento. Nem cabe 28

argumentar com a existência de artigos de lei que não parecem manter qualquer vínculo com a idéia do justo (NOVOA, 1975:74), pois o que está em jogo é o delineamento geral dos sistemas, em sua finalidade, e não esta ou aquela disposição que constitui pormenor insignificante. Fixar-se nestes equivaleria a dizer que há minúcias do processo biológico que não se discerne do vínculo imediato com o que se possa chamar vida, trocando as leis teleonômicas, que o regem, pelos acidentes puramente químicos ou enlaces matemáticos. Falar em direitos de contestação, por exemplo, ainda que se omita a palavra direito, é referir uma parte do processo jurídico mesmo; e NOVOA, entre outros, poderá desvincular as duas coisas, porque seu pensamento ainda gira, apesar das melhores intenções, em torno da formação dogmática, tendendo a registrar, no direito, o simples revestimento do regime socioeconômico existente (NOVOA, 1975:190). Essa redução, como pretendi demonstrar a vocês, é de todo arbitrária e insustentável, em seus próprios termos. E o positivismo de esquerda é apenas o positivismo de direita visto pelo avesso e com acréscimo não-dialético da infra-estrutura mecanicamente determinante. A deturpação da justiça advém do posicionamento de classes, grupos, povos e nações dominadores, segundo um infra-estrutura que os opõe a classes, grupos, povos e nações dominados. O outro direito, destes últimos oriundo, não é menos direito, ou ajurídico; é pólo oposto da dialética jurídico-social, donde salta uma centelha de superação, permitindo a síntese, a cada momento, de que chamei DIREITO IX; isto é, o cadinho em que se forma o parâmetro de estimativa e, portanto, o guia da praxis humana progressista. Essa práxis, ademais, envolve: a) o aproveitamento das contradições dos sistemas normativos estabelecidos (como, por exemplo, voltar as contradições do DIREITO IV contra ele mesmo; b) a criação de novos instrumentos jurídicos de intervenção, dentro da pluralidade de ordenamentos. E o produto final, como atesta a história, sempre emana, enquanto veículo do avanço, das classes, grupos, povos e nações ascendentes que representam o futuro, porque neles o progresso está. Um ensino em que tal manifestação jurídica se omita, ou seja negada, mutila o direito e aliena, repito aqui, o espírito docente e discente, paralisando-o na descrição do DIREITO IV, para que não se dedique a repensar o direito da independência econômica e da liberdade político-social. O que mais urgente necessita ganhar o primeiro plano do direito, em sua doutrina, fundada na praxis retamente analisada, é precisamente a discriminação, na pluralidade de ordenamentos e legalidades, do que nelas aponta, encaminha e dirige a criação duma sociedade nova, sem mais discriminações e privilégios, sem minorias favorecidas, minorias oprimidas e classes, ou povos desamparados. Neste aspecto, pode haver, inclusive, como já apontei, uma decisiva contribuição das próprias normas estatais, dependendo, é claro, de que Estado se cogite, em que direito ele funde a sua legitimidade invocada e a que infra-estrutura corresponda, tanto quanto a que fins esta obedece: a democratização constante ou a paralisação e retrocesso. Não é óbvio que os círculos e programas estão, de forma geral, muito longe de ensejar uma abordagem dinâmica, totalizadora e progressista do universo jurídico? Neles, o que adquire relevo é, sempre, o DIREITO IV, ainda assim considerando como pleno, hermético e sem contradições; isto é, amputando o que, mesmo este, possa ter de vitalidade, nas contradições gritantes que se pretende negar. 29

Talvez seja por isso que se desencanta o jovem estudante de direito. Talvez seja por isso que, dizem, o curso jurídico atrai os alunos acomodados, os carneirinhos dóceis, os bonecos que falam com a voz do ventríloquo oficial, os sectários e Office boys engalanados de um só legislador, que representa a ordem dos interesses estabelecidos. O uso do cachimbo dogmático entorta a boca, ensina a recitar, apenas, artigos, parágrafos e alíneas de “direito oficial”. Mas, então, é também uma injustiça cobrar ao estudante a mentalidade assim formada, como se fosse um destino criado por debilidade intrínseca do seu organismo intelectual. Sendo as refeições do curso tão carentes de vitaminas, que há de estranhar na resultante anemia generalizada? Como professor, peso também as minhas responsabilidades; e digo que, como tantos outros colegas, estou desperto – não para fazer da cátedra um veículo de proselitismo, porém a fim de nela mostrar, com a possível objetividade científica, todos os aspectos da questão essencial, pertinente ao jurídico. O que constitui o ensino do direito errado aí está, nos dois sentidos correlatos, que defini no início desta conferência. E, diante dele, cumpre defender a reforma duma antiga mentalidade, a revisão de todas as mutilações do enfoque do direito, para mudar o que se tornou rotineiro e, já no tempo de CASTRO ALVES, fazia com que o acadêmico de direito visse os próprios compêndios como um soporífero: “Pego o compêndio inspiração sublime pra adormecer inquietações tamanhas. Violei à noite o domicílio – o crime! Onde dormia uma nação de aranhas” (CASTRO, 1966: 175)... É evidente que numa reforma global do ensino jurídico, nesses termos, exigiria condições de viabilidade, que estamos longe de entrever. Porém, ainda que atuando em campo mais limitado, é preciso ter, sempre, em vista esse delineamento inteiro. Pois com ele é que discernimos o direito apresentado no sistema tradicional como verdadeira mutilação, que apresenta as sobras torcidas do que realmente o direito é. E, aparelhados por tal visão, podemos nutrir aquela utopia realista no sentido de ERNST BLOCH, isto é, a alma de uma praxis destinada a alargar os horizontes, dentro das próprias limitações da conjuntura emergente. Com isto, inserimo-nos dentro dessas limitações, sem o propósito de enguli-las, mas, ao revés, com o instrumental para debatê-las. E esta já é uma contribuição ao processo geral, histórico, de superação, que evidentemente transcende a reforma do ensino jurídico, em si, ou mesmo a concepção global do direito. Elas são, apenas, dois aspectos de outra totalidade, ainda maior: o que se realiza no itinerário histórico para um futuro de liberdade, paz, justiça e união fraternal, em vez de dominação do semelhante. O direito é substancialmente, na sua onto-teleologia, um instrumento que deve (para preencher o seu fim), propiciar a concretização de justiça social, em sistemas de normas com particular intensidade coercitiva. No universo jurídico, entretanto, uma dialética se forma, entre as invocações de justiça e as manifestações de iniqüidade, para a síntese superadora das contradições. Mas a consumação d projeto, como o de um ensino certo do direito certo, só pode ocorrer, como direito justo homogeneizado, numa sociedade justa e sem oposição de dominantes e dominados. Preconizá-la é também um passo, embora minúsculo, para o seu advento. O único, porém, ao alcance das minhas deficiências e temperamento; o que realizo, como posso, devolvendo o direito, como um todo, aos espíritos jovens e inquietos, que o reclamam, E isto é viável, dentro das condições do próprio ensino atual, desde que os professores de índole progressista o focalizem, nos seus programas e aulas. Ou assim, no estilo informal deste relatório, em 30

(perdoem-me: o tema é vasto e empolgante) uma tão longa conferência. De qualquer maneira, “o mundo dos juristas, tão calmos, tão bem educados e tão bem-pensantes não é mais o mesmo. Nem se cogita de rendição à nostalgia. É preciso ver os sinais do mundo diferente, que está em gestação. (MIALLE, 1978:146). E, para isso, deixo-lhes, como inspirações e lema, a frase dum jurista notável, GUSTAV RADBRUCH: “só é bom jurista quem o é, de consciência pesada” (RADBRUCH, 1954:44).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANGÜREN, JOSÉ LUIZ (1968) – El Marxismo como Moral, Madri, Alianza Editorial.

ATIENZA, MANUEL (1965) – in RENATO TREVES, Introdución a La Sociología Del Derecho, Madri. Taurus.

BALANDIER, GEORGES (1965) – Anthropologie Politique, Paris, P.U.F.

BALANDIER, GEORGES (1970) – Sociologie des Mutations, Paris, Anthropos.

BARBOSA, RUI (1980) – apud JOSAPHAT MARINHO, Dois Estudos sobre Rui Barbosa, Brasília, edição particular.

CARBONNIER, JEAN (1979) – Sociologia Jurídica, Coimbra, Almedina.

CASTRO ALVES, ANTÔNIO (1966) – Obras Completas, Rio, Aguilar.

CUVILLIER, ARMAND (1975) – Sociologia da Cultura, Porto Alegre, Globo.

DAHRENDORF, RALF (1969) – in WALTER L. WALLACE, Sociological Theory, London, Helnemann.

DAHRENDORF, RALF (1974) – Ensaios de Teoria da Sociedade, Rio, Zahar.

DAVIS, SHELTON A. (1973) – Antropoligia do Direito, Rio, Zahar.

DÍAZ, ELÍAS (1980) – Sociología y Filosofía Del Derecho, Madri, Taurus.

DOS SANTOS, THEOTÔNIO (1977) – Imperialismo e Corporações Multinacionais, Rio, Paz e Terra.

DUVIGNAUD, JEAN (1973) – L’Anomie: Hérésie et Subversion, Paris, Anthropos.

FARACO DE AZEVEDO, PLAUTO (1979) – Limites e Justificação do Poder do Estado, Petrópolis, Vozes.

FREYRE, GILBERTO (1957) – Sociologia, Rio, José Olympio.

GANDY, ROSS (1978) – Introducción a la Sociología Histórica, México, Ediciones Era. 31

GOLDMANN, LUCIEN (1970) – Marxisme et Sciences Humaines, Paris, Gallimard.

GOLOUNSKY & STROGOVIETCH (1965) – apud K. STOYANOVITCH, La Philosophie du Droit en URSS (1917-1953), Paris L.G.D.J.

GONZÁLEZ CAMPOS, JULIO (1976) – in MANUEL ATIENZA et alii, Política y Derechos Humanos, Valencia, Fernando Torres Editor.

GOULIANE, C.I. (1968) – Le Marxisme devant l’Homme, Paris, Payot.

LUKÁCS, GEORG (1972) – Ontologie, Darmstadt und Neuwied, Luchterhand Verlag.

LYRA FILHO, ROBERTO (1972) – A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio, Borsoi.

LYRA FILHO, ROBERTO (1972A) – Criminologia Dialética, Rio Borsoi.

LYRA FILHO, ROBERTO (1977) – A Filosofia Jurídica nos Estados Unidos da América, Porto Alegre, Fabris Editor.

LYRA FILHO, ROBERTO (1980) – Discurso de Agradecimento à Homenagem pelo 30º Aniversário de Docência, Brasília, inédito.

LYRA FILHO, ROBERTO (1980A) – Carta Aberta a Jovem Criminólogo, inédito (aparecerá no próximo número da Revista de Direito Penal).

LYRA FILHO, ROBERTO (1980B) – Para um Direito sem Dogmas, Porto Alegre, Fabris Editor.

MARX, K. & ENGELS, F. (1977) – Cartas Filosóficas e Outros Escritos, São Paulo, Grijalbo.

MAYNEZ, EDUARDO GARCÍA (1977) – Introducción AL Estudio Del Derecho, México, Porrúa.

MIALLE, MICHEL (1978) – in M. BOURJOL et alii, Pour une Critique du Droit, Paris, Maspéro.

NOVOA MONREAL, EDUARDO (1975) – El Derecho como obstáculo al Cambio Social, México, Siglo Veintiuno.

PINTO, ROGER (1969) – in ROGER PINTO & MADELEINE GRAWITZ, Méthodes des Sciences Sociales, Paris, Dalloz.

PODGORECKI, ADAM (1966) – in RENATO TREVES, La Sociologia del Diritto, Milano, Edizioni di Comunità.

PODGORECKI, ADAM (1973) – in DIVERSOS, Knowledge and Opinion about Law, London, Martin Robertson.

RADBRUCH, GUSTAV (1954) – Kleines Rechtsbrevier, Guttingen, Vandenhoeck & Ruprecht.

SANTOS, BOAVENTURA SOUSA (1977) – The Law of the Oppressed, in Law and Society, XII (1): 5-126. 32

SANTOS, BOAVENTURA SOUSA (1980) – in CLÁUDIO SOUTO & JOAQUIM FALCÃO, Sociologia e Direito, São Paulo, Pioneira.